segunda-feira, 26 de novembro de 2012

contos de fadas

Paula Rego, Getting Ready for the Ball (2001-02)

«E viveram felizes para sempre», diz o conto de fadas. O conto de fadas, que ainda hoje é o primeiro conselheiro das crianças, porque o foi primeiro da humanidade, sobrevive, secretamente, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro é e continua a ser o narrador do conto de fadas. Quando um conselho era necessário, o conto de fadas dava-o; quando a necessidade era urgente, o conto fornecia a ajuda mais rápida. Era a urgência provocada pelo mito. O conto de fadas revela-nos as primeiras medidas tomadas pela humanidade para se libertar do pesadelo mítico.  (...)
Há muitos séculos, o conto de fadas ensinou à humanidade, e continua a ensinar hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e atrevimento. (...) O feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como uma entidade mítica, mas antes indica a sua cumplicidade com o homem livre. O adulto só percebe essa cumplicidade ocasionalmente, isto é, quando está feliz; mas a criança percebe-a pela primeira vez no conto de fadas, o que provoca nela uma sensação de felicidade.
Walter Benjamin, O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

fruticultura

subo
na corrente dos dias
e depois das coisas amargas
ponho de lado contente
um pequeno cacho de uvas
das que prometem mel

um dia
a fruta secreta será consumida
e na curva abrupta dos dias
eu e ela devoradas
mais cedo ou mais tarde
rodopio na vertigem
do hélio incandescente
tudo tem a mesma forma
circulante mergulhante
rumo a ti

a fruta e eu somos tempo

quanto a ti: não sei


AP

sábado, 17 de novembro de 2012

por Amaya Egaña (e tantos outros)

Impressionantes, as imagens que nos são dadas a observar aqui n' Os trabalhos e os dias. Tanto nos devem dar que pensar - enquanto representação do vazio mais cruel - que tomo a liberdade de as assinalar assim. Há fantasmas de betão a pairar em lugares ajardinados...

stop em Sta. Apolónia

foto de Pauliana Valente Pimentel - com Cosmic Underground



exercícios

me voy a reflexionar um pouco dizia eu enquanto os meus brinquedos de outrora estavam todos muito bem acondicionados nuns pacotes de vida muito catalogados pois fui sempre apreciadora de ordem. eis senão quando me deu para abrir um deles e logo ali destrambelhar qualquer ilusão de arquivo definitivo. por entre bonequinhos coloridos e fofinhos estava uma fotografia gasta. mas ao olhar para ela o presente iluminou-se pois é certo que alguma coisa de trás costuma vir para a frente e talvez seja esse tão somente o mistério do que somos. eu estou muito sentadinha direitinha ao modo de que já não tinha memória. os outros circundam o lugar que ocupo entretidos enquanto eu mordo o lábio. sei hoje que então esperava alguma coisa. provável fosse o agora algo invisível na imediatez que o traduz. 
e as minhas mãos vasculharam mais descobrindo vestidinhos de bonecas e uma velha bóina que nunca quis usar. questões de teimosia diziam. 
os brinquedos de 2012 ou 13 são de facto mais frios cinzentos às vezes negros polidos e dizem-se tecnológicos. em termos de atmosfera nada de pernas que se encostam à lareira ou de ais que soam por via de desgostos camilianos. ainda que a ironia aconteça ser a mesma. mas as brincadeiras do depois são como as outras do antes posto que se constrói e destrói sempre qualquer coisa. tome-se como exemplo o brincar na idade da razão que é esse lugar estranho da reflexão apurada. diria ainda mais já que estou a escrever coisas. brincar na idade da razão é esse prazer estranho de fazer das emoções uma espécie de instrumentos de acção. a gente como que se esconde atrás da emoção e zás agarramo-la antes que ela nos agarre a nós. de muito sempre serviu brincar às escondidas e à apanhada na meninice - conclui-se. com a emoção toda presa na mão só falta agora colocá-la no lugar certo. usá-la enfim. torná-la produtiva dirá a nossa civilização ocidental sempre apaixonada pelas finanças da emoção. mas a brincadeira genuína existe? existe pois. e tomam-na sempre por perigosa como potencial não dado ao uso. até porque é um desperdício deixar as emoções à solta...
sempre brinquei eu muito menina de ontem e menina de agora. é por isso que - pondero - brinco com a vírgula eliminando-a e faço das palavras um qualquer coisa que pode ser tudo e nada ao mesmo tempo. os meus melhores brinquedos são as palavras ao ponto de se tornarem coisas sérias. brincadeiras sérias há que dizê-lo pois a vida mostra sempre autenticidade no mais sofisticado artifício.
e brincando era para falar do instante da libertação que envolve toda a desconstrução. o instante em que vi os pássaros riscar o céu sufocante imenso azul no ar frio da manhã sombras negras contrastando velozes com o mundo cá de baixo até fazerem de cada lugar uma cápsula protectora aquela onde podemos respirar.
brincando gostava de te respirar a sério. me voy a reflexionar qualquer coisa de ti enquanto guardo de novo os brinquedos de outrora e componho outra vez aqueles pacotinhos de arquivo morto. até chegar a hora de os reabrir à luz deste tempo amanhã que sempre se avizinha de nós.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Dia Mundial da Filosofia

Louis Daguerre, Boulevard du Temple, Paris (1838)

Que é que me fascina, que me deixa encantado nas fotografias que amo? Creio que se trata simplesmente do seguinte: a fotografia é para mim, de certo modo, o dia do Juízo Universal, representa o mundo tal como aparece no último dia, no Dia da Cólera. Não é, certamente, uma questão de tema, não quero dizer que as fotografias que amo são aquelas que representam qualquer coisa de grave, de sério ou, até, de trágico. Não, a fotografia pode mostrar um rosto, um objecto, um acontecimento qualquer. (...)
Conhecem certamente o célebre daguerreótipo do Boulevard du Temple que é considerado a primeira fotografia onde aparece uma figura humana. A chapa de prata representa o boulevard du Temple fotografado por Daguerre da janela do seu estúdio, numa hora de ponta. O boulevard devia estar apinhado de gente e de viaturas e, todavia, dado que os aparelhos da época exigiam um tempo de exposição demasiado longo, de toda aquela massa em movimento não se vê absolutamente nada. Nada, para além de uma pequena figura negra no rodapé, em baixo, à esquerda da fotografia. Trata-se de um homem que estava a engraxar os sapatos e que, por isso, permaneceu imóvel durante bastante tempo, com a perna ligeiramente soerguida para apoiar o pé no banquinho do engraxador. 
Não conseguiria fantasiar uma imagem mais adequada do Juízo Universal. A multidão dos humanos - a humanidade inteira, aliás - está presente mas não se vê, porque o juízo tem a ver com uma única pessoa, uma única vida: aquela exactamente, e não outra. E de que modo foi aquela vida apanhada, captada, imortalizada pelo anjo do Último Dia - que é também o anjo da fotografia? No gesto mais banal e mais vulgar, no gesto de engraxar os sapatos. No instante supremo, o homem, qualquer homem, fica registado para sempre, no seu gesto mais ínfimo e quotidiano. E, todavia, graças à objectiva fotográfica, aquele gesto fica doravante carregado com o peso de toda uma vida, aquela posição irrelevante, talvez desajeitada, resume e contrai em si o sentido de toda uma existência.
Giorgio Agamben, "O Dia do Juízo Final" in Profanações
 

para amar é preciso invocar



terça-feira, 13 de novembro de 2012

a vida é trágica



ser rã é filosófico


eu, que "ando de leituras com os russos", descobri agora este conto, uma pérola da chamada 'prosa pequena'. registo aqui uma amostra:


Eu, apesar de adulto, sou muito pequenino, logo, rãzinha. (...) chamam-me azul porque, como os meus irmãos, me torno azul-claro na Primavera; (...).
Não sou mais do que as outras rãs: apesar de tudo, sou diferente, pois as circunstâncias da minha vida são muito particulares. Estou-me nas tintas para as beldades do pântano, porque continuo a amar Alice; todavia, nada posso contra a Natureza, que leva sempre a melhor; (...).
Entretanto, a minha pequenez oprimia-me muito menos do que poderá pensar-se: dela me esqueci mal me habituei às novas correlações entre corpos e objectos. Depois de assimilar as novas regras do jogo, deixei de aborrecer-me, até porque havia numerosos seres mais pequenos do que eu. Esta vida microscópica, embora rica e enérgica, estimulava-me e acalmava-me. (...)
Sempre admirei a estrofe: "As águas correm pelos abismos do martírio, os bosques crescem nos abismos do mistério". Só que o meu martírio era muito mais doloroso do que o do poeta, que se limitou a referir o extermínio mútuo dos seres vivos em prol da sobrevivência. (...) Estou a falar do ranger das árvores e dos suspiros das ervas. Quando me tornei rã, reparei como as árvores se modificam com a aproximação da noite. Por exemplo, dois vidoeiros, um ao lado do outro, da mesma idade, a mesma casca sã e rija, sem fungos, e a medula igualmente sã e copas frondosas... Parecem réplicas exactas um do outro! Quando cai a noite, porém, um dorme em paz, enquanto o outro range dolorosamente, embora não haja vento. Este ranger é como um gemido, um ai angustiado, um choro sem lágrimas.
A Natureza, como os seres humanos, utiliza mais do que uma língua. (...)
Iuri Markavitch Naguibine, Conto de uma rãzinha azul  

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

fome, pobreza e Cia.

até já estou com pena da Dra. Isabel Jonet. pena pelo massacre que lhe têm feito. e eu não gosto de massacres. trata-se afinal, para mim, de algo relativamente simples: eu não concordo com as declarações que fez. aliás, estou num pólo diametralmente oposto. e assim como a Dra. Isabel Jonet tem o direito de dizer o que diz e de dar essa orientação à instituição pela qual é responsável, eu também tenho o direito de não concordar com ela e de não gostar do seu estilo de caridade. ao qual a minha reacção é forte posto que me é visceralmente desagradável  - as pessoas são seres integrais, com emoções e sensações que também as orientam adequadamente nas suas escolhas e decisões. como tal, sinto-me livre para não colaborar com o BA. de resto, já antes outras coisas me tinham desagradado nesta instituição. acresce que há muitas outras do tipo, de preferência várias de solidariedade social, com as quais poderei colaborar. mas o assunto, para mim, fica por aqui. longa vida ao BA, sobretudo se conseguir matar a fome a alguém (de preferência, a muitos). numa sociedade livre, as pessoas escolhem, e a minha escolha está feita, por agora. era o que mais faltava sermos obrigados para todo o sempre a um compromisso de colaboração com o BA, apenas em virtude de currículos, ou de provas dadas no passado. eu estou agora preocupada com o presente e com o futuro. e, como sabemos, todo o mundo é composto de mudança - para melhor e para pior. o passado conta como referência, mas não como amarra incondicional.
de tudo isto retiro, em especial, uma questão que me interessa: pode uma instituição ser absolutamente independente daqueles que a corporizam? mas isso é uma outra matéria, a qual merece redobrada atenção. a retomar um destes dias...

coisas de outros tempos. ou não.

Uma criada dá sempre a direita aos senhores excepto no «passeio», em que lhes compete sempre o lado de fora.
Se sai do automóvel segue a mesma regra e, portanto, abre a porta do lado direito para a senhora entrar e depois dirige-se para a porta do lado esquerdo. Se vão três pessoas o lugar inferior é o do meio.
Ao subir uma escada, se esta tem corrimão, deve deixar esse lado para os senhores.
A criada bem-educada sempre que a sua senhora passe por ela desvia-se respeitosamente dando-lhe a direita, nunca deixando que a senhora passe por detrás dela.
Quando fala com os seus senhores deve ter o cuidado de não empregar termos grosseiros, não falar de costas ou sentada. Lembre-se que está a falar a superiores e que a delicadeza nunca é demais. 
Deve falar sempre em voz baixa e submissa, nunca interrompendo os seus senhores.
«Instrução Profissional: Aprender para saber. As criadas perante os seus senhores.» in Inês Brasão, O Tempo Das Criadas

domingo, 4 de novembro de 2012

hipótese existencial - toda a vida é arte posto que é ilusão

El Bosco (?), O Prestidigitador (cerca de 1502) 


a expressão tola do ilusionado leva a crer que é essa capacidade de nos deixarmos iludir a que permite uma vida com sentido. procure-se o que está por detrás de... e é o mais radical absurdo o que fica à vista. o absurdo é, por hipótese, o meio onde estamos mergulhados, e que nos recusamos a habitar. o mundo pode ser assim nosso, pois não há quem não seja uma ou outra vez tolo. e com tolices-ilusões se tece a lenta mas também longa teia do mundo. quanto mais rendilhados, mais se respira o mágico que há em nós: o que ilude e o que é iludido.

do Inferno de Strindberg

disse Deus:

Faça-se o movimento, pois o descanso corrompeu-nos! Além disso, quero arriscar-me a uma manifestação, enfrentando embora o contratempo grave de me dispersar e perder na massa bruta!
Vede além, entre Marte e Vénus, como permanecem devolutos alguns miriâmetros do meu domínio.Quero criar ali um novo mundo que sairá do Nada e um dia regressará ao Nada.
As criaturas que nele viverem hão-de julgar-se deuses como nós, e prazer experimentaremos a observar-lhes os combates e as vaidades. Que o seu nome seja mundo da loucura! Qual o teu parecer, irmão Lúcifer que partilhas comigo todos os reinos ao sul da Via Láctea? 

respondeu Lúcifer:

Senhor, irmão, o teu desejo malévolo implica sofrimentos e desgraças. Abomino tal ideia!

August Strindberg, Inferno 

[como saber quem é Deus e quem é Lúcifer?!]

Tolstói



de um conto do período de maturidade:

Efectivamente, se Evguéni Irténev era doente mental no momento do crime, então todas as pessoas são doentes mentais, e, entre esses dementes, os mais enfermos são sem dúvida os que vêem os sinais de loucura nos outros e não reparam em si próprios.
Tolstói, O Diabo (e outros contos)

sábado, 3 de novembro de 2012

a gravidade de sempre

interessa-me a gravidade em todos os sentidos. e uma coisa é certa: a cada um a assumpção da sua gravidade. não são os outros que hão-de carregar connosco.





Regresso ao futuro

Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...