sexta-feira, 29 de agosto de 2008

A preguiça é uma Relíquia




Em fim de férias, finalmente atinjo o estado de preguiça. Só então sinto que descansei. Porque antes delas, e claro que também depois, o direito à preguiça parece não existir. Todo o ritmo de trabalho, ou de produtividade, faz desse estado de calmaria um obstáculo. Certo é que sem alguma preguicite aguda, ao menos no meu caso, o próprio trabalho fica comprometido quanto a bons resultados.

Acho que as férias servem também para relembrar que é preciso saber descansar... não chega ter adquirido esse direito, é preciso fazer dele algo que reverta efectivamente a nosso favor, qualquer que seja a forma adoptada para isso.

No meu estado de preguiça, algo me fez maravilhosa companhia. Uma leitura, feita devagar, com a qual todo o mundo pareceu renovar-se e ganhar de novo cor e encanto: uma Relíquia de Eça de Queiroz. Entre tantas leituras possíveis, veio esta parar às minhas mãos e aos meus olhos. Li muitos outros livros deste autor tão perspicaz, repleto de sentido de humor. Mas tinha-me escapado este! Imprescindível!



"E logo uma ideia sulcou-me o espírito, com um brilho de visitação celeste... Levar à titi um desses galhos, o mais penugento, o mais espinhoso, como sendo a relíquia, fecunda em milagres, a que ela poderia consagrar seus ardores de devota e confiadamente pedir as mercês celestiais! «Se entendes que mereço alguma coisa pelo que tenho feito por ti, traz-me então desses santos lugares uma santa relíquia...» Assim dissera a sra. D. Patrocínio das Neves na véspera da minha jornada piedosa, entronada nos seus damascos vermelhos, diante da Magistratura e da Igreja, deixando escapar uma baga de pranto sob seus óculos austeros. Que lhe podia eu oferecer mais sagrado, mais enternecedor, mais eficaz, que um ramo da árvore de espinhos, colhido no vale do Jordão, numa clara, rosada manhã de missa?»

«Mas como levaríamos para Jerusalém, através dos cerros de Judá, aqueles incómodos espinhos - que, apenas armados na sua forma passional, pareciam já ávidos de rasgar carne inocente? Para o alegre Potte não havia dificuldades; tirou do fundo do seu provido alforge uma fofa nuvem de algodão em rama; envolveu nela delicadamente a coroa de agravo, como uma jóia frágil; depois, com uma folha de papel pardo e um nastro escarlate - fez um embrulho redondo, sólido, ligeiro e nítido... E eu, sorrindo, enrolando o cigarro, pensava nesse outro embrulho de rendas e laços de seda, cheirando a violeta e a amor, que ficara em Jerusalém, esperando por mim e pelo favor dos meus beijos.»
in A Relíquia, Eça de Queiroz

É assim que estas férias terminam, marcadas pela Relíquia e pela preguiça. Ocorre-me que um parágrafo de Eça tem tanto de precioso quanto, no mínimo, um dia de férias (ou mais!).
Porque:
«Sobre a nudez forte da verdade
- o manto diáfano da fantasia»


Imagens: pesquisa do Google


quinta-feira, 21 de agosto de 2008

A cerimónia do chá




Sempre encontrei um encanto especial no ritual do chá, além de gostar da bebida. Com o passar do tempo, a preparação do chá, e a sua partilha com outros(as), tem despertado em mim um interesse cada vez maior, enquanto hábito importante no convívio social. Na verdade, desde há muito, mas muito tempo... que no Oriente se pratica a chamada Cerimónia do Chá.

Diz-nos Kakuzo Okakura n' "O Livro do Chá":

«De começo o chá era um remédio e transformou-se numa beberagem. Na China, no século oito, entrou no reino da poesia como um dos divertimentos polidos. O século quinze viu o Japão enobrecê-lo ao torná-lo numa religião de estética - Chaísmo. O Chaísmo é um culto baseado na adoração do que é belo entre os factos sórdidos da existência diária. Incute beleza e harmonia, o mistério da caridade mútua, o romantismo da ordem social. Consiste essencialmente numa adoração do Imperfeito, já que é uma tentativa terna de atingir algo possível nesta coisa impossível a que chamamos vida.»



«A Filosofia do Chá não é mero esteticismo na acepção vulgar do termo, porque exprime, conjuntamente com a ética e a religião, todo o nosso ponto de vista a respeito do homem e da natureza. É higiene, porque impõe limpeza; é economia, porque revela o conforto que existe na simplicidade, mais do que no que é elaborado e caro; é geometria moral na medida em que define o nosso sentido de proporção face ao universo. Representa o verdadeiro espírito da democracia oriental ao fazer de todos os seus partidários aristocratas no gosto.»



«É na cerimónia-do-chá japonesa que assistimos ao culminar dos ideais-do-chá. A nossa bem sucedida resistência à invasão mongol, em 1281, havia-nos habilitado a continuar o movimento Sung, tão desastrosamente rasurado na própria China com a incursão nómada. Para nós o chá tornou-se mais do que uma idealização da forma de beber; é uma religião da arte da vida. A beberagem veio a tornar-se pretexto para adoração da pureza e do requinte, função sagrada na qual anfitrião e convidado se uniam para criar, naquela ocasião, a maior beatitude mundana. A sala-de-chá era um oásis no baldio tristonho da existência onde viajantes fatigados podiam encontrar-se para beber da nascente comum da apreciação artística. A cerimónia era um drama improvisado cujo enredo se tecia em torno do chá, das flores, e das pinturas. Nem uma cor perturbando a tonalidade da sala, nem um som estragando o ritmo das coisas, nem um gesto intrometendo-se na harmonia, nem uma palavra rompendo a unidade do ambiente, todos os movimentos deveriam fazer-se simples e naturalmente - eram estes os objectivos da cerimónia-do-chá. E, por estranho que pareça, eram amiúde realizados. Uma subtil filosofia jazia por detrás de tudo isto. O Chaísmo era o Taoísmo sob disfarce.»




«A ligação do Zenismo ao chá é proverbial.Já afirmámos que a cerimónia-do-chá resultou do desenvolvimento do ritual zen. O nome de Laotse, o fundador do Taoísmo, está também intimamente associado à história do chá.»

«(...) Entretanto, tomemos um gole de chá. O ardor da tarde ilumina os bambus, as fontes murmuram com gosto, o sussurro dos pinheiros escuta-se na nossa chaleira. Sonhemos com a evanescência, e demoremo-nos na bela tolice das coisas.»

O ritual ou cerimónia do chá é, em rigor, algo bem mais complicado do que a moderna preparação desta bebida, a partir de preceitos e técnicas ocidentais. Ao reparar atentamente na forma tradicional de preparar o chá, quase não acredito em tanta minúcia... Mas a delicadeza, a ordem e a precisão dos gestos, implicados nesta cerimónia, são detalhes que apelam à mais fina sensibilidade. E, nesse sentido, extraordinários. Tranquilizantes, simples e muito belos.
Foi ao ver uma demonstração da cerimónia do chá, realizada de acordo com a tradição coreana, e a partir de um pequeno vídeo, que aconteceu sentir ainda mais curiosidade pelo ritual do chá. Ele faz parte da cultura de todo o Oriente, mas, no Ocidente, a adesão a esta bebida é também uma realidade, desde há muito... Com um outro estilo, é verdade. No entanto, não deixa de ser uma prática onde Oriente e Ocidente podem encontrar-se.





sábado, 16 de agosto de 2008

Espírito de férias



Uma voz muito, muito gira... é esta! Uma das minhas filhas deu-ma a conhecer. Mãe que aprende, agradece!
Obrigada, Marta! Gostei imenso da Duffy!



sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Intelectual




Estava eu em férias de tudo, inclusive de pensamento (se é que tal é possível à condição humana...), passando os olhos por uma revista como mera distracção, quando me deparo com um pequeno mas interessante texto acerca do termo intelectual. E lá se foi o relax do pensamento. Mas ainda bem... ainda bem, sem dúvida. Talvez o pensar seja como o respirar: se não o fizermos, morremos.

Afinal, o que é o intelectual? Ou um intelectual? Em busca de sinónimos para o termo, deparei-me com significados mais ou menos evidentes, muitos deles dados até pelos próprios intelectuais. Ou seja, na sua maioria, significados impregnados de sentidos sociais e políticos. Desde o intelectual comprometido com uma ideologia, até ao intelectual como figura de importante status no seu meio de influência social, passando por uma noção mais ou menos vazia de conteúdo, dada a imprecisão e instabilidade do termo. Claro que também encontrei a definição de intelectual como aquele que se dedica a uma visão crítica da realidade, investigando, reflectindo e educando para a cidadania... Mas também pode ser aquele que não desenvolve o espírito crítico, resumindo-se a investigar, especializando-se assim numa determinada área. Existe mesmo uma distinção entre o sentido europeu do termo e o seu sentido made in USA, enquanto há uma hesitação entre os dois modelos, no caso do Brasil.

Para aprofundar aspectos relativos ao termo: ler aqui

e aqui

Na verdade, parece-me que o termo intelectual é um daqueles que urge repensar. Em rigor, é bem provável que sejamos todos intelectuais. Abstraindo das conotações que lhe foram atribuídas ao longo do tempo, historicamente determinadas, o intelectual de hoje pode vir a perder o seu carácter elitista, o qual é discutível, para se perder num meio dominantemente massificado. Uma reflexão a fazer... Por outro lado, se, hoje, o intelectual de ontem pode deixar de fazer sentido, que destino terão os ditos intelectuais? Outra reflexão a fazer...

A mim, interessa-me em particular uma outra ideia: a de que todos somos intelectuais, no sentido de que todos deveremos exercer o sentido crítico na avaliação da realidade. Esta tarefa é função do cidadão em geral, hoje ainda mais do que ontem. Se existe possibilidade de progresso, ela depende desta condição absolutamente necessária. Neste aspecto, retomo a tradição do intelectual criada por Voltaire, Diderot e pelos Enciclopedistas em geral (de assinalar que a origem do termo é também francesa, com o célebre "Caso Dreyfus", tendo sido usado por Georges Clemenceau em 1898, o qual era defensor de Dreyfus; no geral, descrevia aqueles que estavam do lado do acusado, como, por ex., Zola). E situo-me de acordo com o ideal iluminista, o de que a razão é a luz natural que todos podemos utilizar. Continua a fazer sentido, e continua por concretizar o seu alargamento efectivo à totalidade dos seres racionais. Sem ignorar o necessário confronto com o domínio do irracional, o qual perpassa toda a nossa existência, queiramos ou não.

Afinal, todos somos dotados de intelecto, portanto, todos, mesmo aqueles que se dedicam a trabalhos mais centrados em tarefas manuais, deverão fazer uso dele, já que, potencialmente, é algo de que dispõem desde sempre, de acordo com a sua natureza. A clássica divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual talvez necessite de ser revista. Se é certo que há tarefas distintas, nas quais predomina mais uma ou outra dimensão, também é certo que a condição do ser humano depende, hoje, de uma noção mais íntegra de humanidade. Refiro-me, em concreto, a outra divisão clássica, da qual decorre a anterior, esta entre mente e corpo, à qual está ligada ainda a suposta cisão entre razão e emoção (a este propósito, e como superação destas dicotomias, assinalo o trabalho admirável de António Damásio). Ler parte de uma entrevista onde refere o tema aqui

Parece ser tão inútil cair no elitismo snob e oco da pseudo-intelectualidade, como mergulhar numa existência pré-acéfala que utiliza o termo intelectual como insulto.
Afinal, quando poderemos cumprir a nossa condição de seres íntegros na realidade?
Pensar ou não pensar? Eis a questão. E se já não é rigorosamente de afirmar que "penso, logo existo", será que não é igualmente redutor afirmar que "sinto, logo existo"?

Agradeço ao autor do texto a que fiz referência (João Lopes na revista do Diário de Notícias). Foi a partir da sua leitura que surgiu a inspiração para esta minha pequena reflexão.

Imagem daqui


Regresso ao futuro

Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...