domingo, 25 de março de 2012

pólens

a concentração de pólens está ao máximo dizem eles e cada espirro é assim como a libertação de um mal qualquer que anda espalhado pelo mundo sem estar identificado. uma espécie de carga existencial sem progresso corporizada no ar turvo e parado que cobre o céu todo sem se mostrar. as nuvens em Portugal formam-se com escassa densidade e assim como não nos trazem chuva verdadeira também não nos cobrem cerradamente. se assim fosse talvez um acordar qualquer por entre as horas de dias escuros surgisse. génese de nós então brilho cintilante um instante de fósforo transformador. mas é a lassidão que nos domina: o ar é morno e o temperamento também. a terra está ressequida e a memória adormecida. existe gente feliz como sempre existiu. o mundo ainda se enfeita pelas bandas do pequeno país junto ao mar. há risos e facilidades há doces capacidades e sortes a cumprir desejos. há lugares ao sol e reservas de água só para quem pode. há os que pisam com sorrisos e depois devoram. há selvas individuais que se deslocam no tecido social e ao meio-dia o entrelaçar das malhas surge nítido. não é preciso ver. há mais que fazer. mas há também este pequeno nicho abraçado pelo céu de hoje. a deixar passar predadores a deixar seguir o animal pessoa rumo à presa rumo ao lugar rumo ao poder. a cadeia alimentar socialmente sofisticada projecta milhares para o limbo antecâmara da morte lenta. tudo é náusea por antecipação. e quando o sol brilhar amanhã ou depois e a vida parecer tão bela como o mistério das partículas elementares tudo será esplendor na relva agora seca. deitados debaixo do céu onde tudo tem um tempo tudo será espera. providência divina ou um fardo de palha qualquer coisa virá. não a vida não é sempre bela. dentro dela nós somos. e o universo (quando não tem mais nada para fazer) pergunta: o quê?

quinta-feira, 22 de março de 2012

The Fabulous Baron Munchausen

Encontrei esta maravilha do cinema no YouTube (com legendas em inglês), e não resisti a guardá-la aqui. Trata-se de The Fabulous Baron Munchausen (em checo, Baron Prásil - há uma versão anterior com este título, de 1940). Deparamo-nos com 83 minutos de verdadeira magia, levados pela fulgurante imaginação do Méliès Checo Karel Zeman. O filme data de 1961 e parece-me uma autêntica preciosidade. Para apreciadores, é evidentemente aconselhável ver (e rever) todo o filme. 


  



quarta-feira, 21 de março de 2012

o verso é tenso

«Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema fala não de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.
É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. (...) Se um poeta diz "obscuro", "amplo", "barco", "pedra" é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o "obstinado rigor" do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si. E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.»
Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética III, Geografia

domingo, 18 de março de 2012

um Mandrake didáctico

Um dos meus heróis de juventude, Mandrake, aparece nesta imagem a desempenhar uma tarefa didáctica: dar a conhecer aos mais jovens alguns elementos básicos da estrutura da matéria. Afinal, a magia pode estar onde menos se espera. Por outro lado, um modelo explicativo que possua a desejável simplicidade no que diz respeito à constituição da matéria, é algo que continua em falta. O chamado modelo-standard, adoptado pela actual física de partículas, consiste numa gloriosa trapalhada (dado o elevado número de partículas elementares descobertas) - isto, reproduzindo a expressão utilizada por João Magueijo. Apesar disso, insistir em desvendar os segredos do universo ao nível da microfísica, só pode continuar a ser uma tarefa fascinante e um objectivo incontornável.

Joe Musial, Learn How Dagwood Splits the Atom (1949)


sábado, 17 de março de 2012

notícias

Fotografia de Laurent Laveder
 
há uma felicidade especial no momento passado que só morre quando não há nada dele em todo o presente e nada no futuro que se aproxima em cada segundo pois quando respiramos há uma data deles os nanossegundos a matar o tempo e uma série de outros a criá-lo também. o tempo é uma experiência de recuperação do que já não pode ser igual. a diferença actual revela o sentido possível do vivido. e o sentido pode ser tão simples quanto o que fica depois de o tempo esbater o que foi acessório. o que fica brilha por si mesmo. a minha memória guardou uma série de coisas que já não lembro. de outras fez uma construção tão sólida como a que imagino define o meu próprio eu. é nessas que revejo aqueles que me habitam. mas afinal ao cair da noite o que queria dizer é só este presente que é um presente do passado. todo dito fica assim: gostei de ter notícias tuas. lembras-te? eu também.

nuvens com jazz


...porque os dias nublados são melhores para certas audições




[re] sociedades artificiais


Convido-vos a ler o esclarecimento prestado pelo Porfírio Silva, no seu blogue Machina Speculatrix, em resposta ao que escrevi em sociedades artificiais. Tem esta resposta o título: um diagnóstico, não um projecto .
Gosto de pensar que uma sociedade artificial, como é aquela em que já estamos mergulhados, pode tornar-se uma sociedade mais humana. É também por isso que creio ser tão importante pensar no papel das novas tecnologias na nossa vida.
A todos os que passam, desejo boas leituras e boas reflexões. E um muito obrigada ao Porfírio Silva.

quarta-feira, 14 de março de 2012

máximas sofistas


Divide et impera. Isto é, se no teu povo existem certas personalidades privilegiadas que simplesmente te escolheram como seu chefe supremo (primus inter pares) desune-as e isola-as do povo; fica então ao lado deste último sob a falsa pretensão de maior liberdade e assim tudo dependerá da tua vontade absoluta ou, se se trata de Estados exteriores, a criação de discórdia entre eles é um meio bastante seguro de os submeteres a ti um após outro, sob a aparência de apoiar o mais débil.
Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos

domingo, 11 de março de 2012

Boas sugestões



...para trabalhar com os alunos do 10º ano.

Nicolas Jaar

Tem apenas 22 anos mas promete. Nicolas Jaar: electro música no seu melhor, ou seja, com a capacidade de introduzir na composição interessantes variações. Em muitas mixes, há um regresso a temas clássicos. No geral, designa a sua música por "blue-wave". Parece-me bem. Aqui fica este With Just One Glance You, de que gosto especialmente. A voz é de Scout LaRue.




Seven in the morning, gotta wake up, look like my name
I have a bath and oil my skin, my hair done like a lion's mane
My corset's laced up nice and tight
Diamonds, pearls, they feel alright
When I see you standing there
The evening sun upon your hair
Covered up with garden dirt
With just one glance you tear my skirt
And I say...


sábado, 10 de março de 2012

modo: devagar

ah como gosto dos dias dolentes escassos. sentir o tempo escoar-se com tempo. o ar parado. as sensações sentidas devagar. os pensamentos a serem agarrados com precisão na palma da mão. a doce presença dos outros. o seu sorriso. a sua conivência comigo e com o mundo. ao longe imagina-se a diferença. é uma ideia vaga. e uma sensação imprecisa. a estranheza familiar da vida. uma hipótese com o desenho de uma cumplicidade inesperada. e de um longínquo próximo. como se houvesse ainda no mundo mais coisas para experimentar. um como se que se beija na brandura das horas tranquilas. e o haver minutos e horas para imaginar um ponto de fusão. do qual não se conhece a secreta fórmula. a magia dessa suspensão na qual o meu ser habita. precisamente dentro deste finito tempo. são os dias da exactidão. daquilo que o espaço não alcança - enquanto o rumor ciciante das palavras faz a viagem do desejo. mais logo as estrelas hão-de chegar a horas. e tudo porque o tempo passa.

quinta-feira, 8 de março de 2012

gosto de ser mulher

Cindy Sherman, Untitled Film Still 53 (1980)




Instantes


Escrita do Poema

A mão traça no branco das paredes
A negrura das letras
Há um silêncio grave
A mesa brilha docemente o seu polido

De certa forma
Fico alheia

Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética III, Geografia

terça-feira, 6 de março de 2012

Sociedades Artificiais


Podemos contribuir para clarificar essas questões se compreendermos qual é o núcleo duro das Ciências do Artificial, o que passa por compreender como elas participam do projecto moderno de nos tornarmos senhores e donos da natureza, consistente em "fazer o verdadeiro" em dois sentidos: "fazermos o que já é verdadeiro" (sermos capazes de construir algo, um programa de computador, um robô, que funcione segundo os mesmos princípios ou que tenha as mesmas capacidades de certas criaturas vivas, humanos ou outros animais, que queremos compreender) e "criarmos o novo verdadeiro, fazendo-o" (criar natureza, sermos capazes de fabricar novas criaturas que desafiem a sofisticação das que encontramos na natureza).

Eu, curiosa, após a leitura que fiz há tempos do livro - cuja leitura aconselho a todos os que gostem de filosofia e de pensar o futuro - fiquei a cogitar nestas novas criaturas que desafiem a sofisticação das que encontramos na natureza. Com alguma inquietação, confesso. É por isso que deixo ficar aqui um pouco do que me ocorre (de modo mais interrogativo do que assertivo) sobre o assunto - deveras interessante, parece-me.
É sobretudo o segundo sentido do "verdadeiro" (o que sublinhei) que gostava de focar. Que criaturas serão estas? Suponho que humanas, mas novas. Uma nova espécie humana que resulte de uma evolução associada ao desenvolvimento do artificial que, digamos, se lhe "cola à pele". Uso esta expressão porque é aí que incide grande parte das minhas preocupações e interrogações. E isto a partir do que o Porfírio Silva diz também, apresentando-nos uma visão de futuro a realizar (p.199):

Essa declaração de possibilidade de fusão dos reinos é o núcleo duro do programa de investigação das Ciências do Artificial, a sua conjectura orientadora fundamental. Por ela se tenta mostrar que não há nenhuma fronteira relevante entre natural e artificial, entre o que encontramos já feito e o que podemos nós humanos fazer; que está ao nosso alcance deslocar incessantemente essas fronteiras, seja na carne, na mente ou na sociedade; que por essa via aumentaremos, no limite até ao infinito, o nosso poder como donos e senhores da nossa própria natureza, que assim poderá tornar-se completamente artificial.

No que diz respeito ao deslocar fronteiras na mente e na sociedade, nada me choca, digamos (ainda que a esse propósito também me interrogue); mas no caso da carne/corpo (o que acima sublinhei), confesso que a deslocação dessas fronteiras "mexe" comigo. Ou seja, do lado de "fazer o verdadeiro" no primeiro sentido, encontro inúmeros projectos capazes de nos realizar como humanos. E isto sem pôr em causa a nossa especificidade, preservando o que nos caracteriza. Podem, inclusivamente, tornar-nos mais felizes. Refiro-me, por ex., ao futuro papel dos robôs, às redes sociais, etc. Agora, "fazer o verdadeiro" no segundo sentido... não é algo que rejeite, mas fico a pensar no tipo de humanos que viremos a ser e numa série de problemas que daí me parece decorrerem. Na verdade, imagino uma paisagem humana de tal modo diferenciada que a sinto como um risco e perigo para a nossa integridade. Claro que todos os humanos são já diferenciados à partida, mas, apesar disso, temos características comuns bastante estáveis. No caso dessa hipotética futura anatomia/futura natureza, que tipo de definição filogenética seria, então, a adequada? Tal como em tudo, chegaríamos ao ponto de definir regras e criar leis. O que constitui sempre grande problema. É por isso que creio ser importante pensar tudo isto. Seremos nós, certamente, a traçar os rumos desse futuro em curso...

Afinal, a minha dúvida subsistente é sobretudo esta: será necessário incorporar/enxertar novos elementos em nós para realizarmos o que verdadeiramente somos? Por outras palavras, é possível alguém ser verdadeiramente humano sem modificar o seu corpo? Bom, eu adorava voar. Mas só poderei ser realmente humana se o fizer? Humanos-voadores. Parece atraente, mas radical. Qual é afinal o papel do corpo neste futuro de fusão dos reinos? Como é abordada a questão nesse núcleo duro das Ciências do Artificial? Aqui deixo as minhas interrogações, partilhando-as um pouco com todos os eventualmente interessados no assunto. E a minha vénia ao Porfírio Silva por nos fazer pensar...

domingo, 4 de março de 2012

Há o cansaço de ver e o impossível de não o fazer

Robert Longo, Untitled (2007)

«Basta que eu veja qualquer coisa para saber aproximar-me dela e atingi-la, mesmo sem saber como tal se faz na máquina nervosa. O meu corpo móbil conta no mundo visível, faz parte deste, e por isso posso dirigi-lo no visível. Por outro lado, não é menos verdade que a visão está suspensa do movimento. Só se vê aquilo para que se olha. (...) O mundo visível e o dos meus projectos motores são partes totais do mesmo Ser. (...)
Visível e móvel, o meu corpo pertence ao número das coisas, é uma delas, está preso na textura do mundo, e a sua coesão é a de uma coisa. Mas, posto que vê e se move, ele mantém as coisas em círculo à sua volta, elas são um seu anexo ou prolongamento, estão incrustadas na sua carne, fazem parte da sua definição plena, e o mundo é feito do mesmo estofo do corpo. (...)
Uma vez que as coisas e o meu corpo são feitos do mesmo estofo, é necessário que a sua visão de alguma maneira se faça nelas, ou, melhor, que a visibilidade manifesta das coisas se desdobre nele numa visibilidade secreta: a natureza está no interior, disse Cézanne.»
Merleau-Ponty, O olho e o espírito


sábado, 3 de março de 2012

Re-flexão

Robert Longo, Untitled (1981)


Tantas partes de mim andaram ultimamente espalhadas pelo mundo... é agora tempo de voltar, para repensar, e daí partir, também para escrever. Afinal, é todo o trabalho de reconstruir um mundo...

Regresso ao futuro

Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...