Se alguém pretende aproveitar um bom momento de reconstituição histórica acerca da psicanálise, deve ver A Dangerous Method, de David Cronenberg. Quem é apreciador - e mais ou menos seguidor - da obra do realizador, encontrará também, parece-me, marcado interesse neste filme.
Ainda que bastante diferente dos anteriores, e aparentemente em ruptura com um determinado estilo, a marca de Cronenberg está bem presente aqui. E não me refiro só ao detalhe da cena à volta da utilização de um galvanómetro (polígrafo primitivo). Refiro-me sobretudo à depuração da imagem que vemos desde o início, ao corte realizado em cada plano, tornando-o não só perfeito, mas anguloso e incisivo. No entanto, não foi o grau de continuidade formal (e até mesmo temática) com um determinado projecto do realizador o que mais me absorveu no filme (o que é, evidentemente, aspecto por demais interessante - ainda que ele possa muito bem ser, apenas, uma outra forma de fazer filmes, momento de libertação em relação a um certo modelo visual e temático de comunicação).
O que eu gostaria de frisar acerca do filme é o tanto que ele se tornou referência, para mim, enquanto homenagem - e algo da espécie "faça-se justiça" - a dois elementos distintos e consideráveis: o nome de Sabina Spielrein no contexto da história da psicanálise, por um lado; o poder da palavra, por outro. Ou seja, dois perigos, e não de pequena monta. Que, na verdade, se entrelaçam na narrativa das relações entre Freud e Jung: notoriamente, na abertura revelada à intervenção de Sabina nas suas investigações, cada um a seu modo; afinal, nesse interesse de ambos por uma mulher - elemento perigoso em certos domínios, ao ponto de ter sido eclipsada nos livros que servem, por exemplo, para o exercício das funções de professor enquanto repetidor de uma determinada narrativa. E porquê? Caberá, com certeza, a todos dar uma resposta. A minha seria demasiado longa para este espaço.
Esse interesse por uma mulher, que se apresenta como doente, a ser tratada por Jung - caso acompanhado à distância por Freud, desenvolve-se a partir de longos diálogos, remetendo-nos para um plano centrado na intelectualização dos problemas. Mas a aparente indiferença e fleuma de Jung, contrastando com a bipolaridade de Sabina, ora delirante, ora lúcida, conduzem-nos a the big problem: as longas horas de conversa, percorrendo os subterrâneos da mente, produzem efeitos, e os efeitos vivem-se inteiramente: com paixão. À semelhança do efeito que lenta e paulatinamente se produz nas relações entre os dois homens, afastando-os mais tarde, após intermináveis horas de diálogo, passando pela intimidade de narrar e interpretar os sonhos de cada um: até chegarem ao afastamento, às divergências interpretativas, à "morte do pai" realizada por Jung, à antevisão desses acontecimentos por parte de Freud, quando se nega, um belo dia, a narrar o seu sonho. Para onde vai a psicanálise...?
A Dangerous Method, fugindo da tirania desse impacto pela imagem tout court, conduz-nos a um dos maiores perigos que podemos experimentar: o do confronto com a palavra (método de cura no âmbito da psicanálise), face aos estragos que ela pode provocar, não só pelo que envolve de objectivação das trevas em que está mergulhado o inconsciente, mas também, e sobretudo, pela arriscada exposição que envolve, colocando-nos à mercê do seu elemento galvanizante e potencialmente libertador. Revela-nos, afinal, de forma cabal, que a palavra é acção, e que o intelecto, "mexendo cordelinhos" verbais, opera num todo, esse todo que constitui o eu. Pode ter sido essa mesma evidência, o que levou Jung a permanecer horas sentado num banco de jardim, em fascinante quietude, aparentemente olhando apenas uma paisagem... numa espécie de torpor e de estupefacção (quiça num estado de horror interior), transportados até à experiência mística de um certo desconhecido... ou pior ainda, de um certo incompreensível... Será caso para tanto?
O filme apresenta excelentes interpretações de Keira Knightley (Sabina Spielrein), Michael Fassbender (Jung) e Viggo Mortensen (Freud)
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