Surpreende-me sempre um mundo precipitado. Não que todos os acontecimentos beneficiem necessariamente de uma ponderação. A precipitação também intervém na dinâmica do mundo. Por vezes, com bons resultados. Muito mais importante me parece ser a prudência, sobretudo se se trata dos assuntos humanos. A precipitação tem muitas vezes na base uma grande dose de convicção. O problema da convicção no seu estado puro é a sua transmutação em dogma. Este, escusado será negá-lo, exerce grande atracção. Também eu tenho os meus dogmas de estimação. Mas, se há coisa que a filosofia ensina é a perturbá-los.
Dou um exemplo na minha área: Schopenhauer é um filósofo muito interessante. Mas combateu Hegel. Acresce que este também é deveras interessante. Terei que optar entre um e outro? Possivelmente. Desde que a minha opção não me obrigue ao desconhecimento de nenhum deles. Desde que a minha escolha não eclipse os contributos relevantes dos dois. É, no mínimo, uma questão de honestidade intelectual - o que é um princípio moral; no limite, pode ser uma precaução face à perigosidade da sedimentação dogmática - o que também não deixará de ser uma orientação relativa ao que temos por conduta adequada, se assim o entendermos.
Parece-me quase certo que o mundo está empobrecido do ponto de vista moral. Os moralistas, dizem, parecem pessoas aborrecidas. Eu diria que depende da moral. E quanto a essa, somos todos nós que a colocamos no mundo.
Transcrevo:
Parece-me quase certo que o mundo está empobrecido do ponto de vista moral. Os moralistas, dizem, parecem pessoas aborrecidas. Eu diria que depende da moral. E quanto a essa, somos todos nós que a colocamos no mundo.
Como afirmei, Schopenhauer é um filósofo muito interessante, nomeadamente do ponto de vista moralizante. Digamos que é interessante o suficiente para introduzir perturbação no dogma anti-moral.
Transcrevo:
«Não há nada que abale tanto as profundezas do nosso sentimento moral como a crueldade. Qualquer outra falta, podemos perdoá-la; a crueldade nunca. A razão disso é que a crueldade é precisamente o contrário da piedade. Ao tomarmos conhecimento de qualquer acto de crueldade (...) somos de imediato tomados pelo horror; bradamos: "Como podem suceder semelhantes coisas?" E qual é o sentido desta pergunta? (...) O verdadeiro sentido, ei-lo, sem margem para dúvidas: Como se pode ser tão desapiedado? É pois quando uma acção se afasta em extremo da piedade, que ela carrega como um estigma o carácter de uma coisa moralmente condenável, desprezível. A piedade é por excelência o âmbito da moralidade.»
in Arthur Schopenhauer, O Fundamento da Moral
(mas não, isto não é uma escolha entre Schopenhauer e Hegel; se tivesse que escolher, escolheria Kant, o que complica ainda mais as coisas, mas o caso não é para agora).
Imagem: Madeline von Foerster, Self-portrait - 2005
9 comentários:
Bom dia, Ana Paula,
É sempre uma maravilha ler os seus postes.
Um abraço.
Kant!? Nunca o escolheria. Nem pela moral nem pela metafísica. Antes Hume, ou até Leibniz; e Stuart Mill ou Adam Smith, em utilitarismo moral. Bergson destitui Kant; prefiro partir de uma qualquer certeza efectiva e dela deduzir um mundo do que enrodilhar-me num cepticismo suicidário, tipo Kant!
Enfim, entendamo-nos, isto é só uma espécie de sentimento de partida e não uma rejeição de uma atitude crítica sistemática como a de Kant e outros... :)
Ana Paula, e que tal pensarmos na noção de "equipolência" tal como é apresentada por Sexto Empírico, mas aplicada à história da filosofia? A verdade não tem que estar em nenhum sistema ou autor. Provavelmente a verdade não estará mesmo em lado nenhum. E, provavelmente, cada autor existe para servir de contrapeso aos dogmas dos outros. O que é a história da filosofia senão uma história de sínteses e de sínteses de sínteses?
JR
Miguel, muito obrigada pelas palavras de apreço e pela sua atenção.
Um abraço :)
Vasco (vbm): ora aí está uma posição anti-kantiana que suscita interesse. Valeria a pena discuti-la, certamente, mas o modesto espaço deste Catharsis não o permite. No entanto,tomei nota para memória futura em posteriores debates.
Quanto a mim, Kant foi o filósofo mais estimulante que estudei. Mas, se a minha posição ficou clara, como espero, isto não é uma afirmação dogmática, mas sim resultado de grande ponderação. E sujeita a perturbações...
Obrigada pelo teu comentário.
Um abraço :)
José Ricardo Costa: muito obrigada pelo seu comentário, assim como pela excelente referência a Sexto Empírico. É uma ideia para citações futuras, por aqui.
A noção de equipolência vale e bem para esta problemática. O que me leva ainda a pensar que a tranquilidade obtida pela postura céptica dos antigos, não deixa de me colocar problemas. Isto porque não há possibilidade, parece-me, de mergulhar também em absoluto numa eterna suspensão do juízo, ainda que ela represente uma atitude adequada. É preciso também tomar posições, e fazer escolhas.
Um abraço :)
Ana Paula, trazes sempre coisas tão interessantes. E eu sem tempo para ler.
Deixo um bj que hoje é dia de noitada...Ufa! no domingo durmo todo o dia!
A precipitação contém, quase sempre, contém muita verdade. Acrescentaria à crueldade, o cinismo e o desprezo, talves sub-formas de crueladade. Tudo de bom.
Excelente post, as usual.
Outro abraço :|
Não sei se vivemos num mundo precipitado, mas vivemos de certo num tempo apressado. Aqui, releva a arte da antecipação e a necessária e implícita ponderação. Claro que, às vezes, as imposições e a pressa leva-nos à precipitação na tomada de da vontade ou atitude, do mereceria uma melhor e mais profunda reflexão. Coisas da vida.
Este post merecia da uma melhor reflexão da minha parte, mas também aqui o tempo não o favorece.
Quanto à moral, acho que seria muito interesante uma análise às suas normas oriundas do direito natural, que se foram abandonando ou adaptando ao longo dos tempos.
Olá Ana Paula,
Este domínio filosófico comparado, não está de forma alguma ao meu alcance...às vezes leio umas coisas sobre filosofia, concordo com uns, discordo com outros ...não tenho também com quem discutir essas questões!...
Beijinhos com carinho e o melhor fim-de-semana, apesar do alerta-laranja
Manuela
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