segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O mundo é um lugar vazio

A ordem é um aspecto importante da realidade, ainda que saibamos ser o caos igualmente enriquecedor. Uma exigência extrema em relação a aspectos organizativos pode ser contraproducente, e isto nos mais variados contextos. O seu oposto - ou seja, o caos, que aqui interpreto como desorganização - pode resultar numa situação igualmente negativa (digamos, não produtiva).
Postas estas considerações preambulares, registo a leitura de um livro magnífico, que até à data me tinha escapado, quase imperdoavelmente para mim-própria: "A Confissão de Lúcio", de Mário de Sá-Carneiro. Ora, isto pode não estar relacionado com..., mas, na verdade, há quem sinta, como eu, que tudo está ligado a tudo. Nesse pequeno-grande livro, o autor refere-se recorrentemente a sentimentos de repugnância - e acrescento eu, de uma quase-náusea. As repugnâncias podem resultar de inúmeros aspectos da existência, podem até ser psicanaliticamente interpretadas e explicadas. Pois podem, mas não pretendo aqui aprofundar o assunto. É apenas algo muito pessoal e simples o que registo: há na vida real motivos para consideráveis sensações de náusea. Assim acontece nesta actual situação do nosso país, a qual não parece nada saudável. No entanto, há uma ressalva importante quanto a isto: eu não sei se o país real é aquele que nos chega aos olhos e aos ouvidos. Mas, se quanto ao país real tenho algumas dúvidas, quanto à vida real tenho algumas certezas. Sei seguramente, por exemplo, que a vida real envolve trabalho e empenhamento. Sei que a vida real está longe de ser fácil, que decorre entre esforços e desgastes. Obviamente refiro-me ao comum dos mortais, grupo ao qual pertenço com bastante orgulho. E o que pensa o comum dos mortais destas notícias estrondosas e escandalosas, preocupantes e inquietantes do nosso país (ir)real? O que pensa de uma vida constantemente contaminada e desinquietada por ambientes de suspeição? Pois o que ele/ela pensa é que após cumprir o seu horário de trabalho, de Trabalho, repito, nesse momento mereceria algo melhor sobre o que se passa cá fora. Algo efectivamente mais digno e mais sério acerca do país onde vive. Algo que reflectisse a verdadeira realidade que conhece. Sobretudo isso. Porque se a verdade é sempre complexa, se se cria e se fabrica, antes dela, antes dessa grande Verdade, estão algumas outras pequenas verdades irredutíveis. O paradoxo da verdade é este mesmo: falar das pequenas verdades pode ser muito mais complicado.
A outra face da lua, aquela que liricamente é tão tratada como sedutora porque oculta, essa é também aqui a desorganização mental a que muitos ficam sujeitos se quiserem estar in com o que acontece. Este tipo de desorganização, ou de caos, é algo que não se vê, mas que existe. Nem sei mesmo se as quebras na produtividade e no desenvolvimento não passarão grandemente por este caos ao nível das sinapses a que os nossos cérebros estão expostos. Redes neuronais que fervem para descobrir a solução de mistérios criados para nos entreter; problemáticas virtuais que mais parecem puzzles concebidos com as peças erradas, e que jamais criarão uma imagem coerente, enquanto os reais problemas ficam à espera... Olhando melhor, tais projecções vêem-se em toda a sua plenitude: magnificentes construções formais sem conteúdo. O mundo é um lugar vazio.
Efectivamente, o comum cidadão merece mais do que estas histórias de enredos duvidosos. Do que a suspeição a envenenar e a lei ser de brincar. Do que o alimento de apetites vorazes e espectaculares que se não tiverem disto, não têm mais nada, provavelmente. Daquilo que as guerrinhas de bastidores vão congeminando e expurgando cá para fora sem critério.
Sem dúvida, é bom que algo eventualmente oculto conheça a luz do dia. Mas o oculto mais profundo continua como tal. Pois aquilo que seria consideravelmente consequente desocultar, a realidade social do nosso país, essa continua por analisar e esmiuçar em larguíssima medida. Sim, mas isto são aspirações algo naïves. Portanto...
Portanto, espera-se, no mínimo!, que alguém ponha ordem nisto.




12 comentários:

anamar disse...

Ana Paula,
o teu texto é tão ternamente triste , real e muito bom, como tudo o que escreves.

Não resisto a fazer um link para O Mar à Vista.
Beijinho e procura pausas para olhar para o que possa haver de bom, porque o país real e o político, não são muito diferentes... Está tudo ligado.
Boa semana, "dolce Paola"

vbm disse...

Um dia li, da Antígona, o clássico de Jerry Mander, Quatro Argumentos Contra a Televisão: uma demonstração cristalina de que a televisão 'suga' o cérebro. Pela razão simples, humeana, :), de que passam a ser as ideias que originam as impressões, em vez de as impressões gerarem ideias! :)

Com o marketing da política partidária a ajudar, o problema ainda mais se agrava, numa ominosa descerebração das massas manipuladas por pão, circo & passes de demagogia indecorosa.

Maria Ribeiro disse...

CATHARSIS: resumindo e concluindo: à nossa volta, minha amiga, é tudo tão falso, tão farisaico, que custa a crer que possa haver remissão...
Gostei deste texto onde a mensagem está rodeada de dor pelo ambiente que nos cerca, ambiente de suspeição, de corrupção, de farisaísmo, de mentira...
BEIJOS DE
LUSIBERO

A disse...

Ana Paula,
Também gostava de ver colocada alguma ordem nisto. O problema é que não pode ser uma ordem qualquer e, conforme muito bem refere, o vácuo domina, a inquietação aumenta e começamos a não saber para onde nos virarmos, porque, perante as alternativas, será "pior a emenda que o soneto".

Felicito-a pelo texto. Dá voz ao que sinto e pressinto no quotidiano, mas, simultaneamente, lamento que seja verdade o que diz e gostava que não fosse. Todavia, é.
Um grande abraço.

José Rui Fernandes disse...

É inquietante a irrealidade da realidade que nos querem mostrar!
É mais fácil controlar as pessoas massificadas, padronizadas, com o pensamento dirigido. E as pessoas acomodam-se... "pensar para quê se há quem pense por nós?"
Parabéns por esta magnífica reflexão que nos inquieta e interpela!

Um abraço,
José Rui

Porfirio Silva disse...

Ana Paula,
Renovo sempre o meu gosto por visitar esta casa! Os últimos textos confirmam.
Quanto a esses últimos textos, há um grande segredo num dos comentários acima, que reza: "passam a ser as ideias que originam as impressões, em vez de as impressões gerarem ideias". O segredo é... que sempre foi assim, embora as filosofias dominantes lidem mal com isso. Lidem mal com o "argumento do cérebro na cuba".

Miguel Gomes Coelho disse...

Ana Paula,
Estamos fartos mas continuamos a não querer reconhecê-lo porque, simultâneamente, é admitir que também nós falhamos no nosso projecto.
Mas o que mais dói é verificar que naquele país que almejamos, naquele estado de direito de uma Justiça tão sonhada, sucedem atropelos manobrados numa penúmbra nauseabunda.
Não me importa quem seja, nem o cargo que tenha, o que me importa é que, como diz o Mário de Sá-Carneiro nesse magnífico livro, que eu também descobri tarde, num dos últimos parágrafos do texto:
"Antes, não quiz porém deixar de escrever sinceramente, com a maior simplicidade, a minha estranha aventura. Ela prova como factos que se nos afiguram bem claros são muitas vezes os mais emaranhados; ela prova como um inocente, muita vez, se não pode justificar, porque a sua justificação é inverosímil - embora verdadeira ".
Um abraço.

Ana Paula Sena disse...

Anamar: mil obrigadas pela gentileza e solidárias palavras :)
...também pelo link.

Depois de um dia cinzento, às vezes o sol costuma brilhar de novo. Tomara que assim aconteça, não só na natureza, mas também na vida social.

Um beijinho grande.

Vasco (vbm): muito agradeço o teu interessante comentário, em especial por tão bem recordares o David Hume.

Um grato abraço :)

Maria Ribeiro: muito obrigada pelas palavras solidárias!
...e pela alusão aos fariseus :)

Um beijinho grande.

Austeriana: infelizmente, também sinto ser verdade. E concordo consigo: que ordem, afinal? Uma questão e tanto. Não pode, de facto, ser uma ordem qualquer. Mas, o que sinto é ser preciso às vezes uma espécie de ordem prévia, se é que tal é possível. Uma base de estabilidade, a partir da qual se possa construir algo mais sólido; sem mordaças mas com responsabilidades. Essa ordem prévia talvez atenuasse certos efeitos perniciosos de um caos que já se prolonga há demasiado tempo.
Muito obrigada pela reflexão conjunta. Enriquece o que escrevi.

Um grande abraço :)

Ana Paula Sena disse...

José Rui Fernandes: muito obrigada pela visita e pelas palavras de estímulo que deixou ficar.

De facto, a saída da menoridade, ao nível do pensamento, pode ser uma perspectiva demasiado trabalhosa para alguns (ou muitos!). E com tanta gente que se oferece para pensar por nós, ainda mais difícil se torna oferecer resistência e manter a lucidez.

Um grato abraço :)

Porfírio: muito obrigada pela visita e pela atenção. É sempre muito bem vindo :)
Devo dizer que os seus textos, sim, são sempre momentos de grande lucidez e perspicácia na análise.

O segredo que refere é, sem sombra de dúvida, importante. Mais uma vez, ficarei a pensar nele.
Creio significar que a complexidade no domínio social é muito maior do que pode parecer. Daí que quase nada seja, a este nível, absolutamente simples. O que as mentes "fabricam" pode ser a nossa realidade. Ainda que eu tente sempre "espreitar um pouco para fora da cuba" :)

Um grato abraço.

Miguel: muito obrigada pelo seu comentário. E por essa citação magnífica do Mário de Sá-Carneiro, tão elegante, quanto profunda.

O livro termina mesmo assim, com essa advertência relativamente à complexidade que envolve o acto de julgar.
Foi um prazer partilhar um pouco consigo esta excelente leitura :)

Um grato abraço.

Manuela Freitas disse...

Ana Paula,
Tudo que escreve sintoniza perfeitamente com aquilo que penso, mas eu nunca o escreveria tão bem. Começando pela náusea, que Mário de Sá-Carneiro, exprime nesse romance, vai descrevendo uma situação de náusea que é sentida por muita gente.
Só tenho acompanhado as notícias de esguelha e agora com o meu maço de cigarros aqui à minha frente, ocorre-me dizer: Ouvir notícias bloqueia os neurónios e provoca náuseas e um grande pessimismo...
Como se diz popularmente isto está tudo «escaqueirado»...
Bjs,
Manuela

Violeta disse...

Querida Ana Paula,
Tinha saudades de ler-te. Um texto tão profundo, tão bem escrito, sentido e infelizmente tristemente real.
Um mundo é um lugar vazio, às vezes!

C. disse...

Ai, Ana Paula:
a vida é dinâmica... e eu que acredito nisto. mas as minhas sinapses levam-me a vê-lo cada vez mais como um lugar inedecifrável, texto sem coerência, sem coesão. Ando toda baralhada. Até já pensei em deixar de ligar às notícias e a todo este vórtice de "tricas e dicas".

Gosto imenso de ir lendo o que escreve, porque faz sentido.

Beijinho

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