sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Palavras leva-as o vento...


Caro interlocutor:


Daqui, desta terra longínqua que se chama Portugal, lhe envio estas minhas palavras. Escrevo-lhe, portanto, aqui deste país da Europa que se situa ao sul. Sob a influência do vasto mar Atlântico, este meu lugar parece ser porta sempre aberta para o mundo. É por isso mesmo que o faço, de acordo com a minha situação. Escrever é como abrir uma porta, e também uma janela. Deixar entrar alguém no nosso mundo por que nos dirigimos a um outro. Acho que podemos chamar a esta circunstância, própria do modo de ser português, uma relação (ainda que não seja um modo de estar no mundo exclusivo dos que habitam este extremo da Península conhecida por Ibérica, trata-se de algo que muito bem caracteriza os seus habitantes).
Julgo ser esta abertura aos outros, esta incessante procura de um contacto, uma espécie de recusa inconsciente das limitações resultantes de um certo isolamento. Claro que tudo isto sofre a influência deste mar que nos rodeia, e que também nos domina. Sabe... mesmo no interior, conseguimos sentir no ar vestígios de maresia. E, às vezes, na calada da noite, se nos concentrarmos na sonoridade do universo inteiro, nesse silêncio quase sepulcral da madrugada, é-nos possível ouvir ainda, na perfeição, o derramar constante e cadenciado das ondas, quebradas nas areias que nos circundam. Mas este mesmo mar não resolve todos os nossos problemas. Pelo contrário, parece impregná-los de um eterno vaivém de dúvidas e inquietações. Sim, nós temos problemas. Suponho que isso nos iguala ao resto do mundo, ainda que os nossos possuam as suas especificidades.
Por outro lado (desculpe a maçada, caro interlocutor), o que eu gostava mesmo de saber é apenas a resposta a uma pequena questão: "Como crer mais em nós mesmos?". Suponho que por aí, nesse algures que me deito a imaginar, não estejam afectados pelo mesmo pessimismo... Apesar do estado do mundo. É verdade que se encontra péssimo, face aos mais elevados ideais de progresso. Sinceramente, nem sei como lhe justificar tudo isto. Sinto que o seu mundo é o meu mundo. Sinto que hoje já pouco nos separa. Mas, repare, estas palavras podiam chegar-lhe aí quase instantaneamente. E, no entanto, aqui estou, neste cantinho à beira-mar plantado, preferindo deitá-las ao vento. Não podemos ignorar que há aqui uma história e um percurso. Algo que nos faz ser como somos. Se me responder, como espero, diga-me o que lhe parece. Quer dizer, acha que esta nossa posição altera alguma coisa? Enfim... em relação ao lugar no qual, em contrapartida, por aí se situam? Em que diferimos? Se é que diferimos...
Há lugares onde as gentes acreditam nelas próprias. Noutros, apesar do sol que é capaz de tornar o aguilhão do frio mais ameno (ou por isso mesmo!), a indiferença parece singrar. Mas, não duvide, somos adoradores do sol. Estou em crer que por aí também são, ao ponto de nos fazerem uma simpática visita. Talvez lá para o verão... O sol e o mar. Já vê o que nos define. Será isto pouco? Bem, posso confessar-lho: ultimamente, tenho tido esperança no vento...




Imagem: Wind from the Sea, de Andrew Wyeth (1917-2009)


16 comentários:

Miguel Gomes Coelho disse...

Muito belo !
Abraço.

n©n disse...

Não sei de onde vem, nem para onde vai este texto, mas simplesmente... ADOREI!

Bom Ano, Ana.

Beijo

S.

Maria Josefa Paias disse...

Ana Paula, quando comecei a ler, a prosa parecia-me conhecida, e fiquei até ao fim com essa convicção até ver o nome do autor. Não, não vou dizer de quem pensei que era. A confusão pode dever-se talvez à hora tardia e ao cansaço.
Obrigada e um beijinho :)

vbm disse...

Que bela epístola!


Tenho esperança que consigamos
encontrar um caminho próprio
que preservará a identidade
litoral do nosso ser
hispânico.

E será ainda o mar,
o Atlântico e o Índico,
o portador da continuada
diáspora portuguesa pelo mundo.

Paulo disse...

Ana Paula, se aqui estamos e por aqui passamos é porque cremos (e queremos). Belíssimo texto.

Ana Paula Sena disse...

Miguel: Obrigada, e um abraço que lhe dou de volta :)

Non (S.): que bom "ver-te"!

Bom ano para ti também, e para o (a) "essezinho(a) :)))

Beijinho grande e obrigada. Fico feliz por teres gostado.

Josefa: :) Se quiser, pode dizer, claro. Enfim, é da minha autoria, mas quantos (as) dos(as) que li, não estão em mim quando escrevo?!

Eu é que tenho a agradecer a atenção. Um grande beijinho.

Olá, Vasco :)

Obrigada pelas tuas palavras. Tenho exactamente essa mesma esperança.

Um abraço.

Paulo: Muito obrigada pela sua atenção, e pelas boas palavras.

Agradeço igualmente a sua sábia resposta :) Porque cremos e queremos, estamos aqui, sem dúvida.

Um abraço

José Ricardo Costa disse...

"Causa da Decadência dos Povos Peninsulares", do Antero, pode ajudar a perceber certas coisas. Belo texto e não menos bela fotografia.
JR

A.C.Valera disse...

Sobre o título deste post:

O crisântemo e a caneta

O Homem de acção não escreve, age.
Escrever é não agir.
Mas quem escreve sabe e reage:
Escrever é compelir.

E, assim, agir sobre quem lê.
E, assim, agir sobre quem escreve.
Mesmo que seja omitido,
Mesmo que não seja lido.

Patriota disse...

Palavras leva-as o vento, eu acrescentaria: leva-as, para que se dispersem sobre a terra e nela se expandam... um texto de uma poesia enorme e de um sentimento profundo face a um mundo obscurecido. Semeemos palavras, como quem semeia o trigo! =)

Adorei o texto! =)

Violeta disse...

Ana Paula
como sempre fico-me a perder nos teus escritos.Belas são as palavras que aqui deixas.
de uma forma ou de outra também
"ultimamente, tenho tido esperança no vento..."
Bom fim de semana

Maria Ribeiro disse...

CATHARSIS: olhe ,ANA PAULA, li um texto maravilhoso que toca em toda a nossa identidade de povo e de seres humanos.O mar está na nossa genética! Mesmo longe dele ouvimos o seu marulhar e sentimos o seu cheiro único!
Quanto ao pessimismo, minha amiga, está por "aqui" também! Outra das nossas características como povo ibérico!
Estranhamente, somos conhecidos no mundo pela antítese do nosso estado de espírito:a alegria risonha do Sol que nos cobre e nos aquece!
Beijito de
Lusibero

Manuela Freitas disse...

Olá Ana Paula,
O texto está excelente e divagando vai ao cerne da questão: Como crer mais em nós mesmos? Eu parece-me que a resposta vem a seguir, temos uma história, que eu diria de perdas e um percurso, que eu diria sinuoso...é o fado (nostalgia, melancolia, amores e desamores...)ahahahah...tenho que me rir, porque isto do fado é um lugar comum, que me incomoda.
Somos realmente gente de sol e de mar...o Inverno deprime e o vento de facto não me trás muita esperança, parece-me mais uma fatalidade!...
Desculpe Ana, se usei um mau humor...
Beijinhos e obrigada pela saudade...
Manuela
PS. Não sabia que tinha tantos blogues, já estou a seguir 4,o 5º. está muito desactualizado, assim se escrever num ou noutro, eu acompanho.

Anónimo disse...

Excelente texto!... Adorei ver-te livre de citações e referências ficionando a reflexão. Voltarei com mais tempo. Direi apenas que, de facto, o "vento" talvez seja o melhora para a "esperança", mas que não seja de norte... e... porque não? Tudo de bom.

Mar Arável disse...

Um texto quase poético

limpo de palavras

apologérico e franco

Estou consigo quando sublinha

a importancia do vento

de preferencia contra as marés

anamar disse...

Viva Ana Paula,
sim , o vento poderia ser uma ajuda, mas teremos que ficar pelo sol, pelas ondas,e, quem sabe, um dia o "rei" brilhe de outra forma e o barulho do mar seja diferente e as mentes brilhem de outra maneira...
belo texto sobre o ser da nossa portugalidade..
Beijinho
Ana

via disse...

essa inquietação, essa saudade, ausência de que falas e nos cala por vezes e sempre vagamente nos torna melancólicos será do mar como bem descreves, será de termos sido senhores e amos e agora apenas do sonho passado. e esta música que estou a ouvir agora, fantástica, dai-me as palavras que dizem tudo e que dizem nada. bom fim-de-semana!

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Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...