sábado, 23 de janeiro de 2010

Do Desassossego - II

Lisboa, 14 de Março de 1916

Meu querido Sá-Carneiro:

Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do «Marinheiro» ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.
Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histórico que aí vão saíram espontâneas do que sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena - cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.
Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar. Pode ser que se não deitar hoje esta carta no correio amanhã, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no Livro do Desassossego. Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.
As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.
Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.
De que cor será sentir?
Milhares de abraços do seu, sempre muito seu

Fernando Pessôa

P.S. - Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanhã, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histeroneurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si próprio que dele são tão características...
Você acha-me razão, não é verdade?

[a Mário de Sá-Carneiro]


Imagem daqui

12 comentários:

Ana Paula Sena disse...

Sobre o sensacionismo ("de que cor será sentir?"), o «Marinheiro» e a amizade entre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, ler mais com Álvaro de Campos aqui:

http://arquivopessoa.net/textos/2821

Ricardo António Alves disse...

Adoro correspondência, e o Pessoa foi também um grande epistológrafo.

Miguel Gomes Coelho disse...

Ana Paula,
Que magnífica escolha.`
É uma verdadeira fotografia interior.
E que espanto de escrita.
Um abraço.

Benjamina disse...

Ana Paula
Esta carta de Pessoa a Mário de Sá Carneiro é absolutamente fabulosa! Deixa-nos ficar sem ar, de tal forma é intensa e de tal forma transparece a sinceridade e o desassossego no seu todo.
Também não resisti a publicá-la no Armazém em Agosto passado.
Gostei de mais uma vez a ler.
Beijinhos e bom fim de semana.

Nicolina Cabrita disse...

Gosto muito de cartas e diários. Não conhecia esta carta. Fascinante.
Bj

Maria Josefa Paias disse...

E eu hoje continuo tão assim...
Beijinho, Ana Paula.

C. disse...

Numa altura em que ando às voltas com a obra do Pessoa, este post é um must. É admirável que tenha podido existir um ser-pensamento, um sentir-pensamento como este. E depois o Álvaro de Campos frenético e epidérmico, embora o "sentir tudo de todas as maneiras" seja discutível, do meu ponto de vista.
Obrigada, Ana Paula.

[é engraçado: há muito tempo descobri que os dias da semana têm cor, quando os digo e penso neles; o domingo, por exemplo, para mim é vermelho escuro:=))]

Está um "certificado de qualidade" para este blogue, lá no "Marcas". Traz um desafio anexado. Pode levantá-lo quando (e se) lhe apetecer.

Beijinho

Frioleiras disse...

uma delícia ... passar por aqui e
deparar-me.......................
com esta tua belíssima escolhas...

Mário de Sá Carneiro /
Fernando Pessoa.....

saudades deles............
sempre..

via disse...

ora aqui está, preto no branco, o grande burlador, compreende que falar de sentimentos é fingir infinitamente. magnífico.bjo

Mar Arável disse...

Agradeço esta oportunidade

de avivar memórias

Manuela Freitas disse...

Olá Ana Paula,
Já conhecia a carta, mas nunca é de mais voltar a ler...é de facto de uma grande profundidade. («estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo».)
Sempre fui muito de escrever cartas...depois estes meios, tornaram a carta obsoleta, mas considero que para penetrar em mim, só através do papel em branco,sobre o qual a caneta ganha vida própria e corre atrás do meu pensamento.
Beijinhos e que tudo esteja bem,
Manuela

Mónica disse...

e dps de ler isto parece q o resto da "literatura" são cópias fracas :DDD

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