«Dentro da caixa rangeu papel de seda branco. Sobre o papel branco estava uma lágrima de vidro. Tinha um orifício na ponta. No interior, na barriga, a lágrima tinha um sulco. Por baixo da lágrima estava um bilhete. Rudi tinha escrito: "A lágrima está vazia. Enche-a de água. O melhor é água da chuva."
Amalie não podia encher a lágrima. Era verão e havia seca na aldeia. E água do poço não era o mesmo que água da chuva.
Amalie pôs a lágrima à luz em frente à janela. Por fora estava estática. Mas por dentro, ao longo do sulco, estremecia.
Amalie não podia encher a lágrima. Era verão e havia seca na aldeia. E água do poço não era o mesmo que água da chuva.
Amalie pôs a lágrima à luz em frente à janela. Por fora estava estática. Mas por dentro, ao longo do sulco, estremecia.
Durante sete dias o céu esvaíu-se em ondas de calor. Windisch foi até ao fim da aldeia. No vale, olhou para o rio. O céu bebeu água. Voltou a chover.
No pátio a água escorria sobre as pedras da calçada. Amalie postou-se com a lágrima debaixo da goteira. Via a água correr para a barriga da lágrima.
No pátio a água escorria sobre as pedras da calçada. Amalie postou-se com a lágrima debaixo da goteira. Via a água correr para a barriga da lágrima.
Na água da chuva também havia vento. Fez brotar campânulas de vidro entre as árvores. As campânulas estavam baças, as folhas agitavam-se dentro delas. A chuva cantava. Também havia areia na voz da chuva. E também havia lascas de casca das árvores.
A lágrima ficou cheia. Amalie levou-a para o quarto com as mãos molhadas e os pés nus cheios de areia. (...)
Amalie lambeu o pulso. "A água da chuva é doce", disse ela. "O sal é o pranto da lágrima."»
A lágrima ficou cheia. Amalie levou-a para o quarto com as mãos molhadas e os pés nus cheios de areia. (...)
Amalie lambeu o pulso. "A água da chuva é doce", disse ela. "O sal é o pranto da lágrima."»
in Herta Müller, O homem é um grande faisão sobre a terra
[O título do livro refere-se ao provérbio romeno «O homem é um grande faisão sobre a terra», o qual pretende estabelecer a associação entre o voo desajeitado do faisão e os defeitos e a acção desastrosa do homem sobre o mundo que o rodeia. (Nota da tradutora) - Edições Cotovia.]
- Este foi o único livro que pude obter, até agora, de uma escritora que conheço mal, mas a leitura já feita promete-me uma escrita muito poética, mesmo musical, com a constante presença da natureza. A par de uma radicalidade quase cruel na apresentação dos factos. Na verdade, quantas vezes eles contêm tal crueldade? Vezes demais, certamente.
18 comentários:
É marcante a poética desta escrita que não conheço. Agora será, certamente, mais fácil. Obrigado.
Ana Paula,
desconhecia completamente a laureada.
O texto que nos trouxe é lindíssimo, de uma rara sensibilidade, mas com uma força que nos remexe interiormente, que me toca pprofundamente.
Vou já à procura do que possa existir no mercado para ler.
Obrigado.
Muito bem escolhido, Ana Paula.
Um beijinho.
Post oportuno.
Li as duas obras mais conhecidas de Müller há uns anos atrás.
É uma escrita seca, sem artifícios vocabulares, sem palavras a mais.
A leitura não é fácil. A mim, exigiu-me releitura pausada.
Não galvaniza e, sinceramente,embora lhe reconheça valor, não me entusiasmou muito.
Preferia que o Nobel tivesse ido para o Auster ou até para o P. Roth...
Em relação a «O homem é um grande faisão sobre a terra», existem fragmentos belíssimos. Gostei muito deste e o episódio da aranha na orelha da dançarina com os brincos de trevo verdes também me pareceu muito interessante. Deu-me uma boa ideia para um post!
Obrigada, Ana Paula!
Um beijinho.
Grato pela divulgação
Estimulado pela sua apresentação
Olá Sandra
Deu-me a oportunidade de conhecer o estilo de escrita da nova Prémio Nobel de Literatura.
Eu nunca tinha ouvido sequer falar desta escritora e deduzi logo que nada existia editado em português. Afinal enganei-me e vou comprar o livro, gostei da originalidade da escrita.
Boa semana.
Um abraço
Olá Ana Paula, andei distante estes últimos dias, mas de novo contemplo o Catharsis...
um dia hei-de procurar o livro desta escritora, também não a conhecia! =) Os prémios "Nobel" têm essa vantagem, ajudam a divulgar estes escritores fora do seu "casulo pátrio". Tornam-se mais internacionais...
Contudo foi bom revisitar este espaço...
=)
Tenho que confessar a minha ignorância. Até ao anúncio do prémio Nobel nunca tinha ouvido falar dela. Mas estou curiosa.
Mais um Nobel que só conheço de nome :(
Não deixa de ser interessante, apesar de normal, ver cada vez mais mulheres laureadas.
Agradeço as vossas palavras :)
Mal conheço esta escritora, agora laureada. O Nobel é para mim uma referência, mas está longe de ser a mais importante, inclusive na literatura. Tantos mereceriam ser premiados sem o chegarem a ser!
Desta vez, dado que muitas vezes o mundo me parece já pequeno demais, de repente, com esta descoberta, a de uma literatura e vivência outras, esse mesmo mundo pareceu-me ainda imenso. Gosto de pensar em fronteiras alargadas... e
foi assim que me deixei cativar por este talento a confirmar.
Mas claro que os critérios de atribuição dos prémios são discutíveis. Nobel inclusive.
Abraços!
Obrigada por trazeres até aqui este belo escrito da Herta Müller.
Agora de certeza que não faltarão edições em Português.
Que as lágrimas se encham de palavras doces.
Beijinhos Ana Paula
Olá, Ana Paula! Não conhecia esta autora, mas só pelo fragmento transcrito vejo que é um livro belíssimo, bem poético. Fiquei curiosa para lê-lo. Bjos!
E vivam os blogues que nos criam a vontade de procurar o que não conhecemos. Folheei uma vez o livro que refere. Mas senti o "voo desajeitado", na altura. Não senti vontade de comprá-lo e trazê-lo comigo. Penso que vou tentar de novo, agora :-))
Obrigada, Ana Paula.
Isto do Nobel é um rir! Mas pronto, sempre é menos mau que o Nobel da paz para o não-presidente Obama.
Beijinhos.
É como diz, a escrita de Herta Müller soa muito musical! Uma escritora que vou procurar descobrir! E no entanto já é Nobel...
Cumprimentos,
José Rui
Ana Paula,
Junto-me ao grupo dos que desconheciam a laureada. O excerto do post é bastante apelativo, o que é óptimo para quem não conhece nada da autora.
Vou ler qualquer coisa dela, mas antes, vou tentar conhecer melhor esta Mulher enquanto pessoa. Que vida vivida, que percurso, elementos (para mim) fundamentais à melhor compreensão de uma obra literária.
Beijinho.
estou como os outros, pelos vistos só um comentador a conhece,parabéns à Austeriana! desconheço também. O Nobel está a optar por escritores pouco conhecidos, do Le Clésio gostei, esta não sei, de qualquer modo o post é muito oportuno. Obrigada.
Obrigada pela divulgação. Não conheço, mas fiquei curiosa, vou procurar.
bjs
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