domingo, 12 de julho de 2009

Porque gosto de ler

Siri Hustvedt parece-me ser uma excelente escritora. Avalio o seu trabalho, sobretudo a partir do último livro dela que li, "Aquilo Que Eu Amava" (não li ainda o mais recente, "Elegia Para Um Americano"). No entanto, considero-o uma leitura difícil. Não porque o fluir narrativo constitua obstáculo à compreensão da história; não porque as palavras sejam efectivamente obscuras - mas sim porque mergulha no mais tenebroso da natureza humana. Analisa-a sem concessões, quase sem hipótese de fuga perante um lado da nossa condição que pode ser difícil de enfrentar. No fundo, aborda a nossa dimensão animal, e a dificuldade que ela nos coloca na sua coexistência com o lado racional. Não no sentido dualista, mas numa perspectiva integradora, não deixando por isso de revelar tremendos conflitos vivenciais, muitas vezes situando-se ao nível do patológico. O que conduz ao confronto com monstros reais humanos, quase sempre mais horrendos do que os sobrenaturais. Os primeiros estão, de algum modo, dentro de nós.
Concretamente, neste seu livro, a autora aborda muito da problemática relacionada com distúrbios alimentares, assim como com outros comportamentos ditos desviantes. Sendo, no entanto, muito mais do que um romance sobre isso. Revela grande admiração pela pintura, reflexão sobre a arte, entre muitas outras abordagens que merecem atenção. Fica evidente, sem dúvida, o seu interesse pela área da psicanálise e pela das neurociências cognitivas.
A meu ver, trata-se de uma literatura repleta de filosofia. Não iria ao ponto de dizer que se trata de um caso de adesão incondicional, no que me diz respeito. Mas é seguramente um caso literário de inegável interesse (o que pode ser mais importante).

«A arte é misteriosa, mas vender arte talvez seja ainda mais misterioso. O objecto propriamente dito é comprado e vendido, passa de uma pessoa para outra, e, no entanto, há inúmeros factores que intervêm na transacção. Para que o seu valor cresça, uma obra de arte precisa de um clima psicológico particular. Naquela altura, o SoHo proporcionava a temperatura mental certa para que a arte florescesse e os preços subissem em flecha. Seja qual for o período a que pertençam, as obras de arte dispendiosas têm de estar impregnadas pelo intangível - uma ideia de valor. Esta ideia tem o efeito paradoxal de separar a coisa do nome do artista, de tal forma que o nome passa a ser o produto que é comprado e vendido. O objecto vem a reboque do nome, como se não passasse de uma prova material desse nome. Claro que o artista propriamente dito (ou dita) pouco tem a ver com tudo isto.»



«As mentiras são sempre duplas: aquilo que dizemos coexiste com o que não dizemos, mas que poderíamos ter dito. Quando paramos de mentir, o abismo entre as nossas palavras e as nossas convicções íntimas fecha-se, e, então, enveredamos por uma via em que tentamos adequar as palavras que dizemos à linguagem dos nossos pensamentos, ou, pelo menos, daqueles pensamentos que consideramos apropriados para consumo alheio. A mentira de Mark distinguia-se das mentiras vulgares pelo facto de exigir a diligente manutenção de uma ficção consumada. (...) Porém, as mentiras espectaculares não precisam de ser perfeitas. Dependem menos dos talentos do mentiroso do que dos desejos e expectativas daqueles que o escutam.»
in Siri Hustvedt, Aquilo Que Eu Amava (2003)

Lembrei-me da escritora, precisamente agora, já que pude acompanhar na TSF, nesta última sexta-feira (10/07/09), uma entrevista que deu a Carlos Vaz Marques. Esta conversa acontece na época posterior à publicação de "Aquilo Que Eu Amava", fase na qual já estava a trabalhar no seu novo livro. Nela, Siri Hustvedt refere detalhes curiosos do seu percurso literário. Fala do medo e da desconfiança, sentimentos presentes no modo de viver actual. Gostei da sua resposta à pertinente e interessante questão colocada pelo entrevistador:
"- Entre uma pessoa inteligente e uma boa pessoa, qual escolheria?
- (...) escolheria uma boa pessoa. Há pessoas inteligentes sem sentimentos. As boas pessoas são capazes de empatia."
Foi algo assim... quanto a isto. Vale a pena ouvir.


Entrevista a Siri Hustvedt na TSF


e mais sobre a escritora AQUI



Imagens: pesquisa do Google

17 comentários:

Rita Roquette de Vasconcellos disse...

Olá
Não conhecia mas o seu post deu-me imensa vontade de ir a correr comprar o livro.
Boa!
Obrigada
Bjs

Anónimo disse...

Uma sugestão a ter em conta, sem dúvida!

Violeta disse...

«As mentiras são sempre duplas: aquilo que dizemos coexiste com o que não dizemos, mas que poderíamos ter dito. Quando paramos de mentir, o abismo entre as nossas palavras e as nossas convicções íntimas fecha-se, e, então, enveredamos por uma via em que tentamos adequar as palavras que dizemos à linguagem dos nossos pensamentos, ou, pelo menos, daqueles pensamentos que consideramos apropriados para consumo alheio. A mentira de Mark distinguia-se das mentiras vulgares pelo facto de exigir a diligente manutenção de uma ficção consumada. (...) Porém, as mentiras espectaculares não precisam de ser perfeitas. Dependem menos dos talentos do mentiroso do que dos desejos e expectativas daqueles que o escutam.
e com isto está tudo dito.
Um beijo Ana Paula e até breve.
Foi e será sempre um prazer ler-te.

A disse...

"What I loved" é um livro amargo e que deixou um rasto de polémica a partir do momento em que Hustvedt declarou que as personagens principais (o pintor e o filho "desnaturado")remetiam para Paul Auster e Daniel Auster, o filho do primeiro casamento do escritor com L.Davies.
De facto,as obras de Hustvedt abordam com perspicácia questões ligadas à nossa cultura de consumo - a bulimia, a anorexia, a exposição da vida pessoal nos chamados reality shows, a repetição de gestos, discursos e hábitos... E estes temas surgem claramente ligados a estudos no âmbito das neurociências (segundo Paul Auster, Siri Hustvedt "devora" os escritos do "nosso" António Damásio!).
Estou a acabar "The Sorrows of an American". É brilhante!
Um beijinho, Ana Paula, e parabéns pelo post.
Siri Hustvedt é, neste momento, uma das autoras que mais me interessam.

vbm disse...

.

Só li um livro dela: Fantasias de Uma Mulher, editado pela Asa, aqui já há uns anos. Não me lembro, mas achei-a complexa... :)

Mas também o marido, o Paul Auster, não lhe fica atrás. Realmente, como dizes, é árdua a harmonização da vida intelectual nessa grande razão que é o nosso corpo, como dizia Nietzsche e Onfray lembra...

Talvez Michel Montaigne seja o homem da razoabilidade: em breve, estarei nos seus "Ensaios" :): Para já, sigo Platão: «Por onde a razão, como uma brisa, nos levar, por aí devemos ir.»

Ricardo António Alves disse...

Fragmentos interessantíssimos, Ana Paula.
E estou como ela: escolheria uma boa pessoa, sempre e sem hesitar.

Terpsichore Diotima (lusitana combatente) disse...

Olá Ana Paula!

Eu não conseguiria responder a essa resposta ou fazer essa escolha dessa forma.

Porque a bondade é o quê? Vem de onde? Não será ela que vem da verdadeira inteligência?

Que é inteligência?

Beijo amigo

José Manuel Marinho disse...

Adorei a edição. Fiquei com vontade de ler o texto em questão. A resposta dada é acertada, apesar de se poder questionar, de imediato o que é uma boa pessoa e uma pessoa inteligente. Um aboa semana. Beijo.

mdsol disse...

Ana Paula
Mais um post importante. Acompanhei uma longa entrevista da autora que passou no canal 2 julgo no dia 23 de Junho (sim, era véspera de S. João) com um entrevistador que criou uma enorme cumplicidade com ela (Não sei exactamente o nome, sei que é filho do falecido José Fialho Gouveia e tem este apelido). Muito curioso: o que a Ana Paula escreve bate certinho com o registo da entrevista.
Valeu Ana Paula
beijinho

Patriota disse...

Não conhecia a escritora, é sempre uma surpresa entrar neste blog para descobrir um pouco de tudo desde a filosofia à literatura, saboreando intrinsecamente a original arte do Ser e da existência... =)

gostei, aguardo novas "surpresas"...


p.S.: obrigado pelo posto, ajudou-me bastante a conhecer um pouco mais da nova literatura! =)

Anónimo disse...

Mas gosto muito dela por fazer essa escolha, não posso dizer que concordo, porque é muito mais do que isso. É uma forma de estar na vida.

Falando de espertalhões maus, venho fazer algo que ainda nunca fiz... pedir para passar palavra sobre as minhas duas últimas entradas na Ilha.

Um beijinho

via disse...

Não conheço, também sem margem para dúvida, a boa pessoa à inteligente, a inteligência no sentido analítico e lógico é admirável mas não preferível.bjo

Anónimo disse...

querida ana paula, adorei ler. fiquei a pensar no que eu própria responderia se me colocassem essa pergunta. penso que uma pessoa boa pode ser inteligente, ou não será a bondade uma forma de inteligência? beijinho grande :)

Mié disse...

Aguçaste-me, aguçou-me a curiosidade...


anotado.
talvez um livro para as férias :)

um beijinho enorme

Fica bem.

Porcelain disse...

De facto, tenho de estar MUITO atenta às tuas dicas, pois parece-me ser do estilo de leitura que tem todos os ingredientes para me fascinar... :)

Curiosa a resposta de Siri Hustvedt que referes no final do teu post, eu acho que responderia da mesma forma, mas Beethoven ia mais longe e dizia que não existe verdadeira inteligência sem bondade... :)

Beijinhos!

lobices disse...

...gostei de a conhecer e de a ouvir na entrevista do programa Bairro Alto da 2 com o José Fialho

ARTISTA MALDITO disse...

Olá Ana Paula

Já com um pé nas férias e ainda à espera de resolver o meu "caso" de saúde, venho pôr em dia as leituras.

Começo pelo fim da publicação, por ser talvez o que mais me toca: a empatia.

Aquilo que penso é que hoje estamos tão vulneráveis à frieza nas relações que tendemos a procurar refúgios.

Talvez a escritora tenha falhado na definição de ausência de sentimentos, ou na noção de bons sentimentos. Há pessoas inteligentes sem bons sentimentos, no mínimo são incapazes de sentirem profundamente.

Mas, se tomarmos como boas pessoas aquelas que olham o outro como seu igual, estabelecendo com o outro laços e relações de proximidade, sabendo gerir as suas relações, então estamos perante pessoas inteligentes.

Esta é a minha visão, quem cria empatias tem a consciência de que no mundo não somos totalmente autónomos, mas dependemos uns dos outros. Talvez estas pessoas consideradas boas tenham ultrapassado o grau da inteligência. Eu chamo-as sábias.

...E quem é sábio também sabe quando deve mentir:))

Mas na mentira o que faz dela uma arma perigosa é a omissão.

Bem, Ana Paula, vou deixá-la porque começo a divagar e num instante estou a falar de qualquer coisa:)) Hoje estou endiabrada como uma criança!

Beijinhos com muita amizade,
Isabel

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