Ouvi hoje na TSF uma interessante entrevista de Carlos Vaz Marques a Michel Onfray. Politicamente, o filósofo assume uma posição claramente contrária à actual Presidência da República francesa. Ao longo desta conversa, Onfray explica o que o afasta de Sarkozy e justifica algumas das suas opções de vida, nomeadamente a sua recusa em candidatar-se ao mesmo cargo político pela esquerda-radical do seu país. Neste sentido, pode dizer-se que reconfigura o filósofo-rei da «República» de Platão: o poder que deve exercer situa-se preferencialmente no terreno, em contacto directo com as pessoas. Em vez de um Parlamento, o seu lugar de eleição será antes o de uma Universidade Popular, disfrutando aí de novos Jardins de Epicuro. Numa perspectiva polémica mas muito actual, fala-nos da importância dos pequenos poderes. Todos juntos, podem fazer muito, na medida em que cada um faça por intervir no seu pequeno espaço, com o objectivo de contribuir para uma vida boa.
É assim que o verdadeiro sentido do hedonismo ascético, defendido e ensinado por Epicuro, ressuscita - a busca do prazer no seu sentido mais elevado, e não a do mero prazer pelo prazer. Só desse modo é possível encontrar um sentido para a vida e escapar de facto ao niilismo...
Apesar de divergir em relação ao autor, considerando certos pontos de vista, e em relação a alguns aspectos especificamente filosóficos, não posso deixar de salientar o interesse e a actualidade do seu pensamento. Particularmente, a sua preocupação relativa a uma dimensão prática do pensar filosófico.
Um pouco de Michel Onfray escrito-lido:
- "Como é que se pode falar de forma a entendermo-nos, pensar uns nos outros sem interferirmos na vida alheia - pensar na possibilidade de nos tocarmos, talvez - ou tomar um contacto com o outro sem o brutalizarmos? De que forma amar sem renunciar à liberdade, à autonomia e à independência - e tentando preservar os mesmos valores no outro? Pode evitar-se e fugir da luta e da guerra para gozar actividades mais alegres e agradáveis? Como é que se pode impedir que a relação sexuada caia na atracção da violência?"
- "A vida filosófica obriga a que se tente - às vezes sem se conseguir - fazer a adequação entre as afirmações teóricas e os comportamentos práticos. O verbo visa a carne, a palavra tende para a obra activa, a ideia contribui para a atitude. Da mesma forma, a carne visa o verbo, a obra activa tende para a palavra, a atitude contribui para a ideia. Nada de essencial se efectua fora deste movimento perpétuo de ida e volta entre viver e filosofar."
- "Os fins do epicurismo visam o desaparecimento dos desejos que torturam, das ausências que atormentam, das necessidades que fustigam.
Assim, estar diante de uma mesa sumptuosa não obriga o epicurista discípulo do Mestre a fugir espavorido, ninguém o obriga a refugiar-se numa cela monacal para expiar a sua tentação. (...) O sábio deve simplesmente saber usar desta possibilidade como se fosse um bem, e ele fosse um homem livre. A sua força e o seu poder consistem em aproveitar sem se deixar aprisionar, a ter prazer sem cair na escravatura da volúpia alcançada. Ter, mas continuar a ser, sem sucumbir à tirania de um querer que lhe escapa. (...)
Epicuro sabe que a via ascética é mais simples, mais eficaz e mais segura, por ser a menos perigosa e a menos arriscada. Com ela, não se tenta o diabo, não se caminha sobre o fio da navalha, não se põe em risco uma serenidade que se alcançou com esforço, não se expõe um bem tão precioso.
Contudo, ser epicurista não significa ser Epicuro, ser como ele, viver de forma mimética. A fisiologia frágil do criador do Jardim obriga-o a isso, constrange-o a viver de forma ascética, mas os seus discípulos com um corpo mais livre inclinam logo a sua teoria para um declive mais hedonista."
in Michel Onfray, Teoria do Corpo Amoroso
Um pouco de Michel Onfray falado-ouvido - entrevista na TSF
Imagens: pesquisa do Google
18 comentários:
Bom Dia Ana Paula
É um pensar possível na medida da vida contemporânea, uma vida proposta e viável na medida desse pensar.
De facto, não é necessário ser-se asceta para almejar a serenidade, os jardins existem dentro de cada um de nós. Não é necessária a mimese. É esse pequeno mundo que pode tocar o outro e assim sucessivamente.
E podemos ter e continuar a ser, sem perturbação ou confusão dos sentidos.
Foi muito bom ler Michel Onfray, vem de encontro ao meu modo de estar na vida.
Beijinhos madrugadores,
Isabel
Interessante. Só ouvi ainda a parte inicial da entrevista. Li um livro dele, A arte de ter prazer, aqui já há uns anos. Percebia-o avançado, mas não o sabia da esquerda radical. Tenho de ouvir o resto da entrevista.
Ouvi a entrevista e achei-a muito interessante.
Foi uma boa ideia fazeres um post acerca disso.
Querida amiga, tem um bom resto de semana.
Beijo.
De facto um filósofo controverso... não sei se cá em Portugal já temos alguma obra dele publicada... o seu ateísmo tem suscitado alguns dissabores =/...
Um artigo excelente, espero que continue a partilhar connosco estes maravilhosos pensadores... =)
Que boas notícias, ainda bem que há gente assim. Espero que não degenerem, pois sou céptico. Gostei das perspectivas do homem, mas, desculpa, para andar já em enrevistas, quase de massas... Será só estratégia? Bom, fiquemos pelo bem bom. A Berta está à tua espera.
Beijinhos
sempre pensei que se pode tentar adequar as teorias filosóficas ao nosso comportamento quotidiano. e que consegui-lo em muito contribui para a nossa felicidade. gostei muito de ler, ana paula. um grande beijinho.
Isabel: é bem certo que precisamos de mais jardins :) Os melhores começam por se cultivar dentro de nós.
Um beijinho grande :)
Vasco: é verdade, também eu não sabia que Michel Onfray estava tão "comprometido" com a esquerda radical francesa. O termo que aqui chama a atenção é o de "radical". Digo eu... resta saber o que é, de facto, uma esquerda radical, nos tempos que correm. De qualquer forma, o tópico a reter na perspectiva do filósofo, quanto a mim, é o de não desenvolver a sua actividade no contexto institucional. O que não deixa de suscitar, ainda assim, um sem número de interrogações.
Obrigada :)
Nilson: muito obrigada pela atenção :)
Também a mim me pareceu muito interessante ouvir Michel Onfray, bem conduzido por Carlos Vaz Marques.
Daniel: há vários livros de Michel Onfray publicados no nosso país. Um dos mais recentes é "Teoria da Viagem". Mas eu ainda não o li.
Sem dúvida que suscita controvérsia. Na verdade, acho que muito da filosofia tem essa dimensão: provocar o debate de ideias. Desde que não se trate de mera provocação, pode ser um factor positivo.
Obrigada pela partilha :)
poemar-te: há alguns aspectos da perspectiva de Michel Onfray que são realmente muitíssimo interessantes.
O que penso acerca de estar em entrevistas, etc... hoje em dia, só se existe com peso se se for mediatizado. Portanto, passa por aí...
Agora, isto sou eu a pensar: a partir do momento que Onfray participou num debate com Sarkozy, a notoriedade aumentou. Porque é que Sarkozy quis ter esse debate? Esse ponto será o mais importante a considerar.
Já visitei a Berta, pois claro! :))
Alice: obrigada pela tua atenção :)
Um beijinho grande!
"A vida filosófica obriga a que se tente - às vezes sem se conseguir - fazer a adequação entre as afirmações teóricas e os comportamentos práticos..."
mas isto é mesmo dificil, acho eu...
Huuuummm acho que isso da esquerda radical é mesmo só para chatear o Sarkozy!! :D Na teoria, as ideias são verdadeiramente fabulosas, em meu entender, e algumas delas correspondem até a convicções minhas de há longa data... não me parecem sequer radicais... a não ser em termos de mudança; a serem de facto colocadas em prática, a esta altura, seriam provavelmente uma verdadeira revolução! Mas todos conhecemos a distância que vai da teoria à prática... e todos conhecemos as pressões a que o mais honesto dos políticos está sujeito... mas acho bom que se vá pensando de forma inovadora... :)
Será certamente um nome que vou manter em mente... ;)
Beijinhos!
Estive a ouvir os primeiros 18 minutos. Apesar do que diz, muito século XIX,o que não é necessariamente mau. Fiquei mais curioso com o primeiro excerto. Penso que está aí uma das grandes questões éticas que se continusm a pôr -- eu e o outro connosco.
Ana, deixaste um comentário muito inteligente sobre o "Berta", bem analisado e tolerante. Adorei. O texto não ajuíza muito, mostra, com algum humor e algum sentido patéctico da vida que levamos. Parabéns! Também eu ando cheio de trabalho e muito chato, por isso apesar da hora tenho que passar por aqui para ver se não fico completamente idiota. Estamos a mais de um mês do fim de aulas, mas o ambiente que se cria com provas de aferição, festas da criança, visitas de fim de ano, colocam os alunos mais aluados do que o que já são, fazendo das aulas um tormentom maior. Dá que pensar -a mim já me deprime e entristece e ... irrita. Portugal é um pouco assim, não é? Beijinhos e descansa um pouco no fim-de-semana.
É um aquestão muito oportuna, o hedonismo. A questão central, na actualidade, parece ser mesmo esta, a "fisiologia frágil do criador do Jardim obriga-o a isso, constrange-o a viver de forma ascética, mas os seus discípulos com um corpo mais livre inclinam logo a sua teoria para um declive mais hedonista."
Dái um hedenismo egocênctrico, cuja busca do prazer além de desmesurada, é fútil. É um prazer vivido sem tempo, pausas, silêncios, olhares, gestos... Óptima edição! Outro beijnho.
Belíssima escolha no Cine-Mini - deliciei-me. Bom gosto e óptima ideia colocar na banda - cinema. Boa! Outro beijinho.
Olá Ana Paula
Hoje acordei brincalhona, o que não é nada bom. O primeiro a sofrer foi o meu gato, teve de dançar comigo, mas o pobrezinho tem as patas muito curtas.
É fim de semana e sabe bem descontrair:))
Beijinho grande
Isabel
Pois
a teoria e a prática
Nós connosco e os outros
Penso que só em ruptura
os pássaros se sentem livres
mas como não somos pássaros
pelo menos tentemos voar
baixinho
"...Ter, mas continuar a ser, sem sucumbir à tirania de um querer que lhe escapa. (...)"
E estas tuas palavras... "...Todos juntos, podem fazer muito, na medida em que cada um faça por intervir no seu pequeno espaço, com o objectivo de contribuir para uma vida boa."
É isto exacamente o que penso...
Se cada um no seu espaço (ou País) fizesse um pouco melhor, traduzisse em actos as palavras que, muitas vezes, o vento leva...e, que não deixam de ser precisamente... só palavras.
Aos longo dos anos muitos pensadores, muitos filósofos, tentaram contribuir para o alargamento de mentalidades, para a construção de mundos melhores...
o resultado parece não ter sido fácil. Afinal temos o mundo que todos conhecemos...
Grata pela partilha que gostei muito de ler.
Beijinho e um feliz domingo. ;))
Não consegui desprender o olhar da foto, lembrando-me os lagos, as tulipas e as paisagens da Holanda.
urgente!que a palavra se faça carne e a ideia acção, absolutamente! o mundo discursivo pode ser oco se isso não estiver no horizonte. bjo
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