-Auto-Retrato com Símbolos de Vanitas de David Bailly-
Deparei-me com este enigmático auto-retrato, quando lia o capítulo final de um livro sobre a memória. Fez-me pensar, mas também me transmitiu uma certa serenidade. Na verdade, acho-o interessantíssimo. E explico o motivo (o meu):
A necessidade de cumprir prazos... nunca deixa de me provocar ansiedade. Na verdade, tudo depende de prazos, ou seja, de limitações temporais. Se a vida decorre (e assim segue...) marcada pelo ritmo de prazos, tudo acontece de forma bem mais organizada. Sem prazos, cumprir-se-iam as tarefas, os trabalhos, as obrigações, até as devoções?!
O que realmente me ocorre, pela contemplação do auto-retrato de Bailly, é que a própria vida é um prazo. Disso se segue que deverá existir algo para cumprir dentro dele. Em última análise, esse algo que suponho pode ser um absoluto nada. Mas há um prazo. E é inevitável olhar para trás e recordar o que dele já decorreu, ou se gastou. Também parece difícil evitar fazer a projecção do que ainda se dispõe do prazo, para melhor o aproveitar.
Parece dizer-nos Bailly (em silêncio): "O prazo (a vida) decorre repleto(a) de vanitas. No entanto, não podemos prescindir disso." Cada detalhe da pintura parece mostrar o carácter absolutamente efémero da vida, incluindo o confronto entre o retrato do Bailly jovem e o do Bailly já grisalho.
E o quadro? Porque o pintou? É ele uma superação deste modo de ser transitório da vida? Afinal de contas, o pintor já cá não está. Eu estou. E, por enquanto (tal como eu), o quadro também está.
Se a reflexão com base na consciência da vacuidade da vida me parece importante, e até produtiva, não sou totalmente pessimista. Talvez seja a arte a "alimentar" o meu relativo optimismo. Pois, é verdade: este ano, os Dias da Música no CCB vão homenagear Bach. Não sei se por isso, certo é ter-me parecido que o David Bailly ficava muitíssimo bem na companhia deste violino.
Imagem e mais sobre vanitas AQUI
21 comentários:
POis, pois BACH....................
(o meu grande amor....................)
amanhã vou ver se ainda consigo bilhetes!
Um beijinho
Não podemos mesmo prescindir disso, ou a vida não faz sentido. Grande beijo! :)
"A necessidade de cumprir prazos... nunca deixa de me provocar ansiedade(...)". A mim também. Fiz agora uma pausa nos prazos para vir até aqui, no sentido de não enlouquecer ou ficar completamente idiota. A vida é um prazo? Tal como a conhecemos, talvez. E se o é, mais uma razão para, já que não conseguimos ser "selvagens", no sentido de vivermos mais com e na natureza, estilhaçarmos, de vez em quando, o que medeia entre um prazo e outro. O pintor "acabou" o seu prazo, mas deixou a sua marca - esse trabalho, por exemplo, que te impressionou. Os legados pessoais e históricos são factores que ditam se continuamos dependente de prazos ou não. Se vivermos só de prazos, a memória petrifica e a identidade perde-se. Por isso, por exemplo, fazem-se blogues, já que os prazos nos enleiam de tal maneira, não sendo capazes de estar na rua (onde anda ela?), olhar o outro e interpelando-o. Por onde anda o bom-dia, boa tarde, boa-noite, de rua? Ora aí está a teia da vida a prazo, a tecer perigos de ausência de festa. Se calhar, subconscientemente, fiz aquela edição ao dar a voz a outro, enleando a minha voz na dele, para contar com ciclos, dependências e...prazos - estar só com a minha vidinha. Por vezes, é preciso intrometermo-nos, sem sermos inconvenientes. E, muito cuidado para não ficarmos esgotados. Ora, vai longo o devaneio desconexo. Minhas desculpas, mas o trabalho estava a entediar-me. Já agora, bom e alegre (se possível) trabalho para ti e que consigas andar um pouco pela rua.
Olá Ana Paula
Como já sabe sou uma barroca empedernida. Adorei ouvir Bach.
O tempo, sempre em competição com ele, é a nossa luta. Retê-lo no quadro, profusamente adornado de objectos, que são eles os seus intermediários.
O olhar do jovem pintor é frontal, medindo o tempo com a mão, em linha descendente e em paralelo com a linha que desce da cabeça do pintor para a caveira.
Adorei ler a sua reflexão. É bom descobrir sempre algo que aflora à mente, em circunstâncias diversas da vida.
Um bom fim de semana e beijinhos
Isabel
Claro que fica bem na companhia do violino.
E nós na boa companhia das tuas reflexões e... do violino...
:)))
É um quadro fascinante. A arte alargou-lhe o prazo de vida. Só a arte e a descendência estendem o prazo, até uma altura em que já nem a descendência nem a arte.
Recebi a agenda do CCB e conto ir visitar Bach..,
Quanto à tua análise do quadro, está fantástica.
bjs
Bela meditação sobre o mistério da vida e do tempo de viver. O pintor consciente da transitoriedade da vida e da sua essência, a vanitas, retrata-nos o vácuo a que tudo se destina. A caveira, lembra-o. Mas se nos lembrarmos de Leibniz, que nega o espaço e resume o universo ao ponto de vista imaterial de uma sinopse co-possível de o inteligir, então tu, Bailly e Bach, e nós contigo, damos testemunho que todos os prazos de acção culminam na virtualidade de a pensarmos pela razão suficiente de existirmos!
...
(Peço desculpa
se isto não fizer sentido,
mas ontem foi o dia da poesia!)
:)
A arte é um refúgio sublime para o desespero do dia-a-dia - digo, da rotina.
Talvez por isso o artista acabe por tornar-se na sua própria obra de arte.
que belo quadro, ana paula. quantos poemas poderá ele inspirar? é realmente um conto fabulosamente pintado :) eu gosto de prazos... gosto de saber que falta um mês, três dias, duas horas... ajuda a regular o meu nervoso miudinho :) beijinhos, ana paula. e uma óptima semana!
Bach! hei-de lá ir, certamente, há um concerto de bach para flauta que é...ouve...
Belíssimo quadro. Um auto retrato cheio de simbologias que, e concordo contigo, nos remete para a questão da efemeridade das coisas e... toda a "vanita" é vã, não é edificante.
O que ficam são as grandes obras dos grandes génios, essas são eternas...e o pintor David Bailly está aqui :)
ao lado de Bach
_____em sintonia perfeita.
Um beijo enorme
terno
Olá Ana Paula
Trago-lhe um miminho vestido de azul que tenho na minha lapela: BLOG BLUE SEEDS!
Beijinho, Ana Paula
Isabel
Aqui temos símbolos aludindo a:
-à vida terrena espiritual e contemplativa, livros, quadros, esculturas, instrumentos musicais;
-à vida terrena materialista, mais voluptuosa e sensual, espelho, colares, pérolas,joias;
- à fortuna, moedas de ouro e prata, objectos preciosos, tecidos ricos(voludos):
- à brevidade da vida física, a ampulheta;
- à degradação da matéria, flores murchando, folhas secando, a vela que se apagou, a taça de vinho tombada;
-às escrituras sagradas, os manuscritos:
-à morte, a caveira.
Assim, a arte Vanitas representa a morte como a fatalidade irremediável dos homens.
Sendo que, a morte é feita de sucessivas perdas. A glória a fortuna,os prazeres, o poder são deixados para trás com a derrota que a morte impõe, provando-nos que sobre os maiores poderes, um poder ainda maior, o cósmico, sobre tudo impera.
Seria bom, que o homem conseguisse preparar-se para a morte com a mesma naturalidade com que se prepara para a vida, é uma tarefa difícil, com a qual não estamos habituados a lidar.
um beijinho
Que belo esgravatar no indizível
porque na verdade relativa
de todas as coisas
a vida no racional
só
seria insuportável
e... nos Dias da Música no CCB (24, 25 e 26 de Maio) ... o concerto de encerramento já está praticamente esgotado e o 1º (dia 21) também!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Bj
Bela análise, "partilha de slêncios"!
Suponho, contudo, que a impreparação para a morte deriva de hoje em dia quase só se morrer nos hospitais em vez de em casa na proximidade da família chegada.
Com o avanço esperado da medicina genética e higienista - não fumar, não engordar, não comer -, no futuro a obrigação de ser feliz e saudável será ainda mais ditatorial;
pelo que nem nos aperceberemos que os nossos conhecidos morrem para lá de que, aliás, deixaremos de ter família!
Escrevo isto assim, pessimista, por um suicídio ocorrido em 1995 que me deixou surpreendido e em estado de choque: Gilles Deleuze, em 1995, com pouco mais de setenta anos, atirou-se da janela do sétimo andar do seu apartamento em Paris, morte instantânea.
Na altura, os jornais e os amigos do filósofo relataram e explicaram que Deleuze tinha uma doença degenerativa incurável e que progressivamente lhe dominaria a razão e a vontade: daí recusar viver nessas condições.
Ora eu admirava imenso Deleuze, em cujos livros aprendi a perceber Nietzsche, Espinosa, Leibniz, Kant e Hume... Assim, quando se suicidou, senti-me um pouco como o Woody Allen naquele filme que conta ele ter já umas seiscentas gravações-vídeo de entrevistas com o seu filósofo predilecto, um optimista nato, cheio de energia e vontade de viver! Sucedeu, contudo, o dito filósofo ter-se inesperadamente suicidado, pelo que as seiscentas gravações nenhum valor mais tinham! :)
E porque falo disto? Pois bem, recentemente, vi no You Tube, aulas, palestras e entrevistas que Gilles Deleuze deu na Universidade de Vincennes, nos anos 70 e 80. E vi, uma outra, muito curta, em que já não se percebia nada do que ele dizia! Devia ser no auge da sua doença degenerativa, pelo que, embora com desgosto, compreendo melhor porquê Deleuze preferiu não viver mais.
Foi uma atitude como a dos nobres da Roma Antiga, quando perseguidos pelo Imperador ou como a dos Samurais do Império Nipónico, quando derrotados ou desonrados. Pois, em boa verdade, as boas razões de viver são, também, se negadas, as boas razões de morrer.
É verdade vbm , há um afastamento dito "natural de tudo o que tenha a ver com a doença, morte e que envolva sofrimento. Como se o sofrimento tivesse que ser abulido da vida, sómente porque nos incomoda e nós temos que ser sempre ditaturialmente "felizes e saudáveis".
Não cuidamos dos nossos, quando mais precisam e vivemos apavorados com a ideia de morrer orgulhosamente sós. No fundo, tudo se resume aquilo a que eu chamo, a falência dos afectos.
Ironias e simbolismos à volta da vida e da sua finitude...
Excelente post
(tenho um fraquinho pelo assunto/iconografia de' vanitas')
bj
:)
Que interessante, sobre a memória... transmitiu-te tranquilidade, mas tem ali alguns objectos algo inquietantes!! :-D Concordo em absoluto com o que dizes acerca deste retrato transmitir essa efemeridade da vida... também me transmite essa ideia...
A tentativa de transcendermos o carácter efémero da vida será sempre uma meta do ser humano, pelo menos até ao dia em que conseguirmos de facto transcendê-lo, pelo menos de forma satisfatória... a arte ou a produção de algo que deixe marca, é uma forma de minimizar a frustração que o ser humano sente face a essa barreira que ainda não conseguiu superar...
Não sei se a vida é repleta de vacuidade, sei que nós o somos tantas e tantas vezes... e fazemos dela, de facto, um grande amontoado de coisa nenhuma...
Se ela é assim tão efémera, não deveríamos nós aproveitá-la melhor?
Sem prazos, ou pelo menos se os prazos fossem apenas auto-impostos, estou certa de que tudo correria muito melhor...
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