quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Momentos filosóficos - 1


Em tempos onde a sociedade da informação nos presenteia diariamente com sinais negativos, nada melhor, para radicalizar efectivamente o estado do mundo, do que uma reflexão com Schopenhauer (1788-1860, Alemanha).
A propósito do filósofo, há que abordar, no mínimo, e ainda que superficialmente, o seu célebre pessimismo. Sendo que, na sua perspectiva, tudo está ligado ao papel da vontade. Pessimismo e vontade, portanto.
Vontade de quê? - poderemos começar por perguntar. Vontade de viver. Tão simples quanto isso. Dirá Nietzsche (mais tarde) : vontade de poder. Estamos assim numa linha onde se afirma o irracionalismo dos acontecimentos do mundo, do próprio ser humano e da sua vida. Abandona-se a pretensão de que será possível explicar racionalmente o decurso dos acontecimentos, na medida em que eles possuam intrínsecamente tal racionalidade. A nobre tarefa, de acordo com muitos, consistiria em desvelar esse carácter racional da vida e do mundo. Mas, para Schopenhauer, isso seria um objectivo completamente desajustado: o Mundo é apenas Vontade (e Representação - ao que não me refiro directamente aqui e agora).

O pessimismo de Schopenhauer reside na afirmação de que, aconteça o que acontecer, faça-se o que se fizer, seremos sempre dominados pela vontade. Ou seja, pelas nossas visões e desejos "interessados" e pessoais. Individuais. Egoístas. Pela vontade não é possível ir mais além, ultrapassar o domínio dos seus próprios limites, alcançar um outro patamar de realização da humanidade. Também não defendeu a existência de Deus para possível consolo. Mostrou o ser humano abandonado a si mesmo numa antecipação da filosofia existencialista.
Mas existe alguma forma de escapar desta limitadora e fatal vontade, elevando-a? Sim, há vias de libertação. Pelas artes e, em especial entre elas, pela música, cópia da própria vontade.

«Todas as aspirações da vontade, tudo o que a estimula, todas as suas manifestações possíveis, tudo o que agita o nosso coração, tudo o que a razão classifica sob o conceito amplo, e negativo de "sentimento" pode ser exprimido pelas inumeráveis melodias possíveis; (...). Por conseguinte, poderíamos designar o mundo tanto por uma incarnação da música quanto por uma incarnação da vontade, e compreendemos então imediatamente como é que a música empresta a todo o quadro, a toda a cena da vida ou do mundo real um significado mais elevado, e isto, com tanta mais intensidade, quanto mais íntima for a analogia entre a melodia musical e o fenómeno presente.»

in O Mundo como Vontade e Representação, Arthur Schopenhauer



Mas este modo de escapar é ainda demasiado efémero. A verdadeira saída para o sofrimento que a vontade constantemente provoca (pela carência na satisfação de desejos permanentemente renovados); a única saída efectiva consiste na sua própria anulação, na sua ausência. Mas isso implicaria a morte. É possível, no entanto, alcançar um estado alternativo de serenidade, de ausência de desejo e de vontade. O caminho é o da reflexão, o da meditação, o da renúncia ao corpo (experiência do Nirvana), lugar no qual o mais individual se revela, e sede da vida no seu sentido mais íntimo e radical. Esta solução resulta de princípios característicos das filosofias e das religiões orientais, tais como o budismo, das quais Schopenhauer assumiu a influência.

Parece-me que alguma reflexão e meditação são benéficas. Estou certa de que a música é essencial para a felicidade. E a via ascética não deixa de me seduzir algumas vezes. Compreendo o pessimismo do filósofo. Reconheço-lhe o brilhantismo e a genialidade das ideias, que serão retomadas, ainda que com outros contornos e nuances, e com outras orientações, por Nietzsche, por Bergson, e até mesmo por Freud. Não sou, no entanto, asceta e seguidora da filosofia de Schopenhauer. Também não sou voluntarista, no sentido filosófico do termo. As classificações generalistas podem ser muito úteis, mas são sempre redutoras. O que se impõe é reconhecer o mérito deste seu pessimismo. Há que conceder que foi brilhante o modo como escreveu e como pensou em busca da verdade. Um prisma de infinitas faces, talvez seja a verdadeira essência do mundo e da verdade. Neste caso, mostra-se a face da Vontade. Nem sempre bela.

Apesar da força das suas ideias, a filosofia do pessimismo radical encontrou-se num beco sem saída (uma verdadeira contradição nos termos) : a renúncia voluntária só pode ser em si mesma um acto de vontade. Pressupondo que a anulação da vontade seja um processo, e não obra de um mágico instante qualquer, a vontade (de renunciar) teria que estar sempre presente.
Hegel foi o principal alvo da sua crítica, muitas vezes injusta. O trabalho crítico pode ser demolidor. Pode ser também não sistemático e traduzir problemáticas vincadamente pessoais, quer dizer, traduzir o domínio da vontade, individual e subjectiva. Schopenhauer tomou Hegel como inimigo visceral, em grande parte porque todos corriam a ouvir o seu adversário filosófico, enquanto poucos apareciam para o ouvir a ele. Situação largamente provocada pelo facto de ter marcado as suas lições exactamente para a mesma hora, em Berlim. Aspectos biográficos interessantes, relacionados certamente com a sua brilhante tematização do papel da vontade na vida humana...

É por estas (e por outras) que gosto de filosofia!


Imagens: pesquisa do Google


14 comentários:

Patriota disse...

A arte é o verdadeiro caminho para a felicidade. Falo de arte digo: música, pintura, escrita, etc. Talvez porque afastam o negativismo do dia-a-dia, e nos elevem a um plano espiritual mais elevado.

p.s. - notei na capa do livro com a imagem de Luther King, com o título "I have a dream", ter sonhos é também um caminho para a felicidade. Não acham?
Falar de Luther King também pode conduzir a um pensamento filosófico interessante.

http://fragmentostexto.blogspot.com

Frioleiras disse...

Dizes:

"O caminho é o da reflexão, o da meditação, o da renúncia ao corpo (experiência do Nirvana), lugar no qual o mais individual se revela, e sede da vida no seu sentido mais íntimo e radical. Esta solução resulta de princípios característicos das filosofias e das religiões orientais" ...

Concordo contigo mas a reflexão poderá tb ser uma reflexão cristã!
Eu sou católica e esse facto tem-me ajudado em muitas vicissitudes da vida...

a religião, a arte e a música.

Serão, para mim, os 3 pilares que me ajudam a correr contra a maré...

Concordo, portanto tb com o que o Daniel acima comentou
(com excepção p o L King.... cada pessoa será icon no seu próprio tempo... e este não é já o tempo do L.King... por isso é que acho tb q tds "embarcaram em arco" com o Obama mas... ele é fogo-fátuo.

Se ele não fosso negro os eleitores não teriam tido por ele a sedução que tiveram !
Foi a cor e nada mais!.

Luther King é de outra época que já nada tem a ver com este séc. XXI sem ideologias nem religão e.... não estamos numa época iluminista, tão pouco!)

Bj

observatory disse...

vou volta

o assunto interessa-me

muuuuuuuuuuuuuuuuuuito.

Mié disse...

Estive cá já de manhã. O tema é complexo para mim que de filosofia não pesco nada...

li, reli, fui lá e apenas fico com este pensamento

Estamos num beco sem saída realmente quanto à vontade de satisfazer o desejo e que nos leva ao pessimismo. Seja qual for o caminho que o ser humano escolha para se livrar da vontade esse acto é sempre um acto de vontade.

beijo

enorme

Ricardo António Alves disse...

... E no entanto, perturba verificar como os homens de génio podem sucumbir à mesquinhez demasiado humana, como é o despeito...

Violeta disse...

Acho que nem sempre somos dominados pela vontade...mas acredito que, memso filosoficamente, pode ser verdade.
Nota-se que gostas de filosofia, só assim escrevias um texto tão encantador.
Excelente. parabéns!

Mié disse...

Respondo.te lá o que ontem de manhã me inspiraste e que são as minhas convicções_______sem filosofia nenhuma.

Seria muito longo para aqui.

beijo

enorme

e obrigada por me fazeres (incentivar) a ler os nossos pensadores.

observatory disse...

...

para que nos serve a existencia?

hmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm!

hmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm!

hmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm!

corner disse...

A existência?

Serve para ser vivida da melhor maneira possível (sem que para o facto se prejudiquem outros, obviamente).

Ser vivida e absorvida
até ao tutano.

Nada mais!

jorge esteves disse...

Um resumo biográfico muito interessante mesmo. A(s) questão(tões) têm, ao longo do tempo, suscitado muita reflexão e, porventura, outra mesma dose de controvérsia.
Aqui, pelo tempo e pelo lugar, aligeiraria a questão olhando o meu próprio umbigo: ok!, confesso, pessismista encartado, assumido e militante. Talvez não seja coisa para que por isso me ufane, tudo bem; mas há uma coisa que eu sei: tenho muitas e muitas mais agradáveis surpresas do que um optimista!...


abraços!

Frioleiras disse...

Nada do que se pensa deste mundo em plena decadência se pode chamar
pessimismo.
Pelo contrário é realismo puro.

Na verdade, de que vale a pena lutar se não existe ética, nem honra, nem ideais políticos nem religiões.

E não vai haver saída para isto.

Se todos os governos e partidos, sejam eles quais forem, cá ou lá fora, são movidos apenas por interesses pouco honestos e sem ideologias.

Creio que o homem (desta civilização) já não tem solução.

A esperança de uma vida digna desapareceu do mapa dos mundos e não vale a pena fingir ou refabricar ideologias obsoletas e que já não fazem sentido.

Oxalá me engane.

Mar Arável disse...

Parabens pelo texto

Que alguem pense e fça pensar

Cada caso é um caso

um modo de vida e sonhar

Para mim não estamos no fim

da história nem das ideologias

e talvez por isso

minoritário acredito

na utopia das artes

resisto à ideia preversa

que transforma pessoas

em eleitores

partilha de silêncios disse...

Um resumo muito interessante, que incentiva a reflexão.
Apesar de todo o seu profundo pessimismo, a filosofia de Schopenhauer, apresenta a doutrina da supremacia da vontade, considerando esta como a principal força da natureza.
A experiência interna revela ao indivíduo que ele é um ser que se move por si mesmo, um ser activo cujo comportamento expressa directamente a sua vontade.

bjs

Isabel Victor disse...

"... Um prisma de infinitas faces, talvez seja a verdadeira essência do mundo e da verdade. Neste caso, mostra-se a face da Vontade. Nem sempre bela."


________ sub.escrevo


viajo por aqui, sempre com imenso gosto e interesse ...



Bj* Ana Paula

Regresso ao futuro

Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...