segunda-feira, 28 de março de 2011

Muito é perspectiva

Mark Rothko, Untitled, 1969

Estive a ler umas coisas de Freeman Dyson a propósito de energia nuclear. Dyson fez parte de um projecto de viagens espaciais (o projecto Orion) que propunha a utilização de um sistema de propulsão nuclear. Isto, há umas quantas décadas atrás. Mas, entretanto, a ideia foi abandonada, atendendo ao perigo das explosões nucleares na nossa atmosfera, e mesmo no espaço. Felizmente, digo eu (que sou a favor da exploração espacial como destino futuro da humanidade), o projecto foi abandonado (porque também considero o nuclear perigosíssimo para esse futuro da humanidade)! Assunto curioso, mas não é bem o que quero agora focar.
Acontece que acabei por ficar presa a umas quantas outras palavras de Dyson, sem dúvida, uma mente brilhante - e também bastante polémica. Ao fazer estas afirmações progressistas, ele depositava, certamente, grande confiança na espécie humana:

«O facto central da nossa situação é que vivemos em muitas escalas de tempo diferentes. A humanidade sobreviveu no passado e tem de aprender a sobreviver no futuro lidando com problemas em muitas escalas de tempo simultaneamente. (...) Esta é a principal razão da complexidade da natureza humana. Somos a única espécie que tem consciência da passagem do tempo e da nossa mortalidade, a única espécie com uma consciência do futuro. (...)
Numa escala de tempo de cem anos, cada um de nós estará morto como indivíduo. Sobreviver numa escala de tempo de cem anos significa sobreviver como família, como nação, como escola de ciência ou de arte, como empresa industrial ou como comunidade religiosa. Visto que a nossa espécie evoluiu para sobreviver numa escala de tempo de centenas de anos, temos lealdades para com estas unidades sociais mais amplas que transcendem as nossas vidas individuais. As lealdades para a família, tribo e instituição estão profundamente enraizadas na nossa natureza. Sem estas fortes lealdades a causas maiores do que nós próprios não seríamos humanos. Quando olhamos para o futuro numa escala de tempo de cem anos, a questão central que devemos colocar é a seguinte: a que causas devem dirigir-se as nossas lealdades?»
in Freeman Dyson, Mundos Imaginados

[o sublinhado é meu]

Posto isto, o que há a acrescentar talvez seja algo assim: que a humanidade anda a dirigir cada vez mais as suas lealdades a estranhas causas, transformadas em "curtas" causas. É que a questão não se aplica só ao nuclear, mas sim a muitíssimo mais... Por este andar, a perspectiva a cem anos pode ser a nossa pré-extinção (sim, eu sei que sou uma optimista). Que pena ainda ninguém ter inventado um "alargador de horizontes temporais"... O problema é que isto não vai lá só com aparelhos, implica também (e de que maneira!) mentalidades. Coisas bastante humanas, portanto.

10 comentários:

vbm disse...

Belíssima reflexão a tua,
e perspícua percepção de Dyson!

A ideia de escala ou horizonte de tempo para diferenres realidades de acção política e social é tão óbvia e geométrica quanto a de qualquer inferência lógica restrita à condição ceteris paribus, a de «tudo o mais constante»...

E nisto de bem pensar a acção de longo prazo, a democracia tem um modo limitado de ajudar, visão toldada pelo curto prazo do poder imediato, sem cuidar dos parâmetros de validade que deverão persistir no futuro possível.

Ana Paula Sena disse...

Obrigada, Vasco :)

vale a pena ler, quando isso nos enriquece, e nos leva a acompanhar um verdadeiro pensar a sério. quanto a mim, este é um desses casos.

infelizmente, estamos mergulhados na visão curto prazo. também faz falta, mas não deixa por isso de estar a anos-luz de ser tudo o que é preciso.

um abraço.

Anónimo disse...

Confesso Ana Paula que quando vi a foto do perfil (loira) e a profissão (professora) esperava um blog a falar de Cup Cakes, rimel, batons, dos programas da Oprah Winfrey e do querido mudei a casa. Enganei-me! Pôs-me a pensar! O que dá muito trabalho após um longo dia de trabalho. Mas como tem cara de "boa rapariga" prometo voltar. Antes da pré extinção da espécie, claro.

;)

O Puma disse...

Assino o sublinhado

Mar Arável disse...

é preciso conquistar o deserto

grão a grão

Eliete disse...

Ana Paula, muito boa sua reflexão e a citação deste autor. Fico a pensar a quem estamos sendo leais?
Às vezes ,penso que a lealdade no âmbito familiar está acabando tb.

Ana Paula Sena disse...

Oficial e Cavalheiro (não é nada ao Richard Gere, pois não?): muito obrigada pela visita e pelo interessante comentário.

...é caso para dizer: "quem vê caras, não vê blogs" :)

estou convencida de que a armadura medieval o vai proteger da pré-extinção. portanto, conto com a sua presença.

Ana Paula Sena disse...

O Puma: obrigada pela solidariedade :)

Ana Paula Sena disse...

Mar Arável: século a século... :)

Um abraço.

Ana Paula Sena disse...

Olá, Eliete!

infelizmente, a lealdade tem vindo a cair em desuso. neste caso, a lealdade para com o que transcende os nossos interesses imediatos e individuais.

um grande beijinho :)

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