domingo, 4 de julho de 2010

Metafísica virtual

«Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que aí fiz, porque são tão metafísicas e tão pouco comuns que não serão talvez do gosto de toda a gente. E, todavia, vejo-me de certo modo obrigado a delas falar, a fim de que se possa avaliar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes. (...) considerando que todos os pensamentos que temos no estado de vigília nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que, neste caso, algum seja verdadeiro, resolvi supor que todas as coisas que até então tinham entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo a seguir, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, era de todo necessário que eu, que o pensava, fosse alguma coisa.»
R. Descartes, Discurso do Método (Quarta Parte)


Estou aqui e estou lá. Quando estou aqui, julgo que estou aqui, mas pode ser que esteja lá. Quando estou lá, julgo que estou lá, mas pode ser que esteja aqui. Ou estarei algures em transição, a meio caminho de aqui e de lá? Não sei se há um aqui e um lá, ou se existirá apenas um único lugar para estar, um aqui-lá (ou o seu inverso). Enfim, um lugar. Se não sei, é porque duvido. E se duvido, é porque não estou certa. Mas estou quase certa de que transporto daqui para lá (e do inverso também tenho quase a certeza). Ou será que não acontece nada disso. Será que, muito simplesmente, está tudo a circular no mesmo lugar? Que nome dar a esse lugar? Realidade? Verdade? Nesse caso, é tudo real,  e é tudo verdadeiro, este aqui e o que nele há, tal como aquele lá com tudo o que lá se encontra. Mas também pode ser tudo irreal, o lá, tal como o aqui. Como ter a certeza de que é real? Utilize-se o critério do corpo: é real o que afecta o meu corpo. Nesse caso, por ex., quando sinto sede, estar aqui é real. Mas estar lá também não pode deixar de o ser - acontece sentir exactamente o mesmo. (...)

[Não, isto não é nada de sério. É só um momento de dúvida não metódica. Ao contrário da de Descartes, o qual, de resto, obteve algumas certezas a partir do pensamento, separando-o do corpo (e depois, tentando ligar ambos). Até que ponto é isso possível? Separar? Unir? Acho que este lugar (este aqui) é um bom teste a tudo isso.]



Imagem: pesquisa do Google

7 comentários:

Joaquim Maria Castanho disse...

Vigésimo Primeiro Cálice


Aqueles que não amam, sequer
Não são protegidos de Arina
Confundindo, portanto, A mulher
Com qualquer coisa, qualquer menina!


*

Três vezes sete foram as loucuras
Até ver as coisas como enfim são,
Que tudo há no mundo se o procuras
Na redonda vitória, sem teias de ilusão...


Bebida a última gota só formas puras
Ficam a dançar nos romances do pão
Bordados com as flores tecidas, seguras
No entretecido feminino da perfeição.

Estrelas, cometas, verdejantes prados
Claustros frescos, nichos triangulares
Onde os dizeres se tornam outros arados
De arrotear as tardes serenas, singulares

Em que os enredos maiores são calados
Como beijos recatados, cruzados a pares.


**


Sete pra ti, sete pra mim, e outros tantos
Pròs que nascerem agora deste momento,
Que vida fora se iniciarão leis e santos
Da beleza cativos, seu único tormento

Tomado gota a gota, cálice a cálice
Virando páginas por rumo na rota
Do interpretar, tecendo análise.


Trago a trago apreciado mandamento
Em que as frases se intitulam frota
E os parágrafos esquadrão de alento
Se batalha trava quem por si se afoita:

Que nosso é o firmamento dos mantos
Se em asas delta se tocam plo vértice
A siar rasgando medos e desencantos.


***


Duas vontades unidas por um só fim
Entretecida verdade nas duas metades
Que sendo tua a metade das liberdades
A outra em liberdade me cabe, a mim...

Se entretanto para esse tanto, assim
A que tanto disseste «talvez» e «não»
Outro tanto baste agora dizer: «sim!»

Sim ao Sol que na Aliança Velha arde
Onde por força só baste o ter razão,
Que a ancestralidade nunca é tarde
Se ao conhecimento vem renovação

De cada metade, desse outro ser nascido
Gota a gota caído em clepsidra sem fim
Que há do oito deitado ao infinito ido!

vbm disse...

É muito giro, Descartes. Só tarde o li, bem depois de todos o terem criticado. E, no entanto, o que impede de contrapor ao mundo toda a corrente do nosso pensar? Possivelmente, a probabilidade de o pensar ser imanente ao mundo e dele indistinguível, no fundo. De qualquer modo, o pensamento permite posicionar o mundo como um caso exemplar do simplesmente possível. :))

Diogo C. disse...

:)

via disse...

real será o pensamento que assim separa e une. a metafísica cartesiana é pela separação, na análise é bem sucedido e falha na síntese. a razão também. a síntese pode fazer-se fora da razão, com ela mas não apenas com ela.engraçado ainda há minutos comentei um post a propósito de descartes, cujas semelhanças com este são grandes. bjo

Teresa Santos disse...

Afinal, o que é o aqui, o lá? O que nos garante a veracidade do real? O que é real, o que é imaginário?
Beijinho.

Há.dias.assim disse...

Ana Paula,
Ando demasiado cansada para escrever e isso reflecte-se nos post e comentários.Queria dizer muita coisa, mas fico-me por um olá.
Bj

José Ricardo Costa disse...

Eu diria que, até pelo que mostram as neurociências, que somos obrigados a unir. Mas que de vez em quando sabe bem fingir que separamos, lá isso sabe.

JR

Regresso ao futuro

Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...