segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Amor à fatia - I

A época natalícia está à porta. Por sinal, os dias são bem pequenos, o friozinho de Inverno já vem saudar-nos - brrrrrr..., há luzes douradas e coloridas a piscar por aqui e por ali... Mas, não há consumos nem artificialismos que possam fazer um Natal. O espírito da época, a existir, só pode ser o espírito do amor. E como fica bonito dizer isto, quando eu sou avessa a coisas demasiado bonitinhas. Mas o amor, aquele que subsiste às devastadoras intempéries do mundo, afinal, existe? Pode esse eterno tema e desejo de... confortar as nossas esperanças? Uma coisa é certa, não é só viver o amor que pode ser excelente. Reflectir sobre ele pode revelar aquela pequena faísca de quase-divino que há nos seres humanos (será?). Já que o dito e célebre amor costuma encontrar-se misturado com uma série de pseudo-arquétipos amorosos, a depuração quer-se necessária.
Deve ser por tudo isto, e não só, que os filósofos não podem fugir do amor. Desde Platão, com o seu Banquete, por exemplo, que ele constitui uma das mais perenes questões filosóficas. Em rigor, viver o amor não implica deixar de o pensar, como costumam defender alguns. Talvez pensando-o um pouco mais, ele possa ser efectivamente impulso de uma plenitude e de um progresso realmente vívidos e vividos. Digo-o eu, enfim, com os meus idealismos da maturidade.
Devo confessar que os anjinhos da minha infância continuam a acompanhar-me... e até a proteger-me. Mas, agora, esses anjos são tão humanos como eu. Um deles consegue realizar a insólita façanha de estar sempre a sorrir-me. Quando o olho de frente, dá-se como que uma espécie de encantamento. Tem a forma algo vaga e indefinida de uma deusa de outros tempos. Se os anjos têm sexo ou não, fica para outra vez. Sei claramente e vejo-o, esse anjo só pode ser a minha amada filosofia (estranhamente, ou não, reveste-se quase sempre da forma masculina dos grandes filósofos, embora não seja caso para esquecer que por trás de um Sócrates, ou de um Platão, estava uma fantástica Diotima!).
Desejo que neste Natal, apesar dos males deste nosso mundo, os vossos anjos vos sorriam!


Filosofia do Amor - tópicos

«O desejo, ou ainda mais o amor, é a possibilidade dada ao homem de entrar em posse do seu bem.
Este amor transforma-se em medo (metus): "As pessoas não têm dúvidas de que o medo tem apenas por objecto a perda do que amamos, se o obtivemos, ou a sua não-obtenção, se o esperamos obter." Do querer possuir e do querer manter o desejo nasce o medo da perda. No instante em que é possuído, o desejo transforma-se em medo. Assim como o desejo deseja o bem, o medo receia o mal. O mal, que afasta o medo, ameaça a vida feliz que consiste em possuir o bem. (...)
Se é verdade que todo o homem particular vive isolado, ele tenta no entanto ultrapassar sempre este isolamento através do amor; (...). Mas porque é que o mundo pode ser um deserto para o homem que procura? Como e por que o homem pode viver no questionamento que é a sua procura, sem nada exigir ao mundo? (...)
Como vemos, o que é preciso amar é, tanto depois como antes, a ausência de medo, assimilada à auto-suficiência; o que é verdadeiro não é o que não tem necessidade. A atitude concreta que daí deriva é a ausência de medo. O que especifica o ser humano é precisamente o medo que procede da dependência. A libido não é má porque o de fora é mau, mas sim porque é dependência daquilo que por princípio não está no seu poder; é má, isto é, não livre. Isto não contradiz, no entanto, o que foi dito acima: o desejo é determinado pelo seu objecto, que se transforma, segundo os casos, em cobiça ou caridade. (...) Não é pelo facto de ser amado que o mundo é mau e que o desejo se transforma a si mesmo em cobiça, porque orienta-se para o de fora; é este, o de fora enquanto de fora, que o torna escravo. A liberdade é ser livre do medo e reside na autonomia. Veremos mais tarde que a caridade é livre precisamente porque não tem medo (timorem foras mittit).»
in Hannah Arendt, O Conceito de Amor em Santo Agostinho



Imagem: pesquisa do Google

18 comentários:

Ana Paula Sena disse...

Nota: "O Conceito de Amor em Santo Agostinho" (1929) é a dissertação de doutoramento de Hannah Arendt.

observatory disse...

pois...

amor para si

Nicolina Cabrita disse...

Não há dúvida que estamos sempre a aprender! Não fazia ideia que uma mulher figurasse no «Banquete» de Platão do qual, infelizmente, só li excertos. Menos ainda que fosse associada ao conceito de amor platónico. Aliás, estava convencida que o amor platónico era um conceito que, para os gregos, se aplicava à relação entre iguais, ou seja, entre homens. Estou muito errada?
Um abraço

Violeta disse...

Eis uma boa dissertação...
Quanto ao medo, conheço-o. Ainda hoje falei dele como resposta a um comentário no meu psot "às vezes sabe bem". porque o medo de amor é o inverso do amor.
Bjos e sim, apesar de tudo o meu anjo sempre me sorriu..

Mar Arável disse...

O amor só existe

na nossa cabeça

o coração é um músculo

Manuela Freitas disse...

Olá Paula,
Gostei bastante de ler o seu texto (excelente) e o complemento de Hannah Arendt. Uma forma muito inteligente de desejar um bom natal, fugindo ao lugar comum. Eu sempre que venho aqui surpreendo-me e aprendo.
Quanto ao amor, a idade foi-me amolecendo, passei de considerar afectos e manifestações verbais e gestuais, de «kitche», para uma situação de manifestação aberta de afecto, relativamente às pessoas que realmente são muito importantes para mim e para aquelas que considero que podem precisar de uma palavra mais delicada ou até de um gesto afectuoso.
Anjos que sorriem, é uma imagem deliciosa!...
Beijinhos,
Manuela

via disse...

O amor e o medo,o desejo cria o medo, porque cria uma dependência que não podemos controlar, mas não há como fugir senão deixando de amar e essa parece ser a cedência total ao medo. fala de outra forma de amor sem líbido, a caridade, liberta é verdade mas não basta, ser escravo também tem a sua dimensão trangressora pois que o somos por vontade. bom texto.

Anónimo disse...

Título de edição óptimo;(inteligência arguta). Texto muito bem escolhido com imensa possibilidade de reflexão. O Natal só tem sentido quando partilha e reflexão profunda e alargada à comunidade familiar e não só. Não sei se é impressão minha ou este ano o ataque comercial natalício está mais débil. Porquê? Não me parece muito fácil de explicar: da chamada "crise", desencanto, até, dos comercialeiros? Solidão profundíssima, tão profunda que inibe? Que ultrapassa a normal necessidade de também possuirmos momentos de solidão? Sinais quase imperceptiveis de mudança social, económica e política no mundo? Pressinto algo...(Soube há pouco que Berlusconi foi agredido, não é muito natalício, mas é sinal de algo e talvez não tenha sido encomendado pelo próprio...) É um prazer renovado vir até aqui, um prazer que é desejo de saber e de envolvimento do corpo, pois não se conhece sem ele; por exemplo - aqui tecla-se com fluência, com um impulso orgânico. Tudo de bom. Que o renascer perpéctuo seja uma constante.

Miguel Gomes Coelho disse...

Ana Paula,
que belo texto.
Saudações. :-)

Ana Paula Sena disse...

Caros amigos/as e leitores/as: muito obrigada pela vossa atenção e pelos vossos excelentes comentários que enaltecem o tema do amor.

observatory: pois... amor para si também :)

Nicolina: não está nada errada.

De facto, o amor platónico tem, na origem da sua concepção, essa vertente do amor entre iguais. Abreviando muito a questão, é de referir que tinha como ideal os corpos belos e perfeitos (que, segundo consta, Sócrates estava longe de possuir) dos jovens. Por outro lado, assentava no desenvolvimento da relação mestre-discípulo. Este último aspecto pode ser interpretado precisamente como "amor pela sabedoria", logo, filosofia. Há, portanto uma mistura (se assim se pode falar) do amor erótico com o amor pela sabedoria.

Quanto a Diotima... uma figura feminina quase nunca é conotada com a História da Filosofia, salvo raras excepções. Neste caso, de acordo com antigas tradições, a sabedoria no feminino estava muito ligada às funções das sacerdotisas, logo, com um carácter bastante mais místico do que racional.
Eis um pequeno excerto do Banquete, diálogo no qual nos é apresentada por Sócrates a teoria sobre o amor de Diotima, e que diz assim:

"Há uma doutrina sobre o Amor que escutei em tempos a uma mulher de Mantineia, Diotima, mulher versada não só nesta matéria como em muitas outras. (...); e foi ela também que me instruiu sobre os fenómenos do amor. É pois essa doutrina que vou procurar referir-vos, na medida dos meus recursos, a partir das conclusões a que eu e Ágaton chegámos."

Muito obrigada pela visita, pelo comentário e pela questão :)

Um abraço

Ana Paula Sena disse...

Violeta: também o conheço, ao medo.
O problema do medo do amor, é quando o medo de o perder o destrói. Aí, mais forte será o medo do que o próprio amor.
Portanto, amemos destemidamente :) ... se possível.

Um beijinho grande para ti.

Mar Arável: de facto, é onde julgo que o amor existe mais, dado que o coração só por si é apenas um músculo, como tão bem refere. Músculo por músculo, importantíssimo para a vida, não cria por si o amor.

Um abraço :)

Manuela: muito obrigada pelas simpáticas palavras. Como sabe, também eu gosto muito de visitar o Light.
Concordo: com o passar do tempo, fica ainda mais importante libertar os afectos e exteriorizá-los com aqueles que nos são deveras importantes. Tenho hoje uma pena imensa de não ter abraçado mais os meus pais.

O anjinho a sorrir é querido :) Consegue aquecer o Natal - foi o que também me pareceu.

Beijinho grande.

poemar-te: agradeço-te as boas palavras. Tens razão, também eu tenho sentido que este ano os afãs comerciais estão um bocado mais calmos. Talvez outras exigências comecem a conquistar terreno, dado que tudo isso não passa de grande ilusão. Ainda que o conforto nos faça bem... sou sempre pela moderação.
...com o corpo, sim, tudo passa pelo corpo. Ou seja, o que se aprende e se pensa depende em muito da vida no seu todo, e no caso de cada um. Parece-me uma excelente afirmação.

Um abraço :)

Miguel: muito obrigada pela atenção e pela simpatia.

Um abraço :)

Ana Paula Sena disse...

Via: bom, isto é só uma fatia :))
Tenho tentado comer o bolo todo, mas não se consegue, é imenso.

Colocas excelentes objecções. Evidente que o contexto aqui é o do amor cristão, e a ultrapassagem do amor terreno, tendo em vista a libertação no seio do amor a Deus.
No entanto, a noção de caridade parece-me excelente, já que aponta para um amor como dádiva sem os medos egoístas relativos à posse. Há aspectos do cristianismo muito interessantes e cativantes, ainda que muitas críticas sejam de fazer. Bastaria referirmos Nietzsche, a título de exemplo de uma possível posição crítica radical.

Somos todos escravos, enfim... Umas vezes sem querer, outras por querer. Mas, se é por querer, é acto de liberdade. E, então, enfrenta-se e ultrapassa-se até o medo. Mas no que se refere a escravaturas, e considerando algo que me tem ocorrido cada vez mais - ou seja, o facto de existir uma espécie de ensaio nas relações amorosas, para as relações sociais (e vice-versa), não sei até que ponto é possível aceitar uma subjugação na sociedade, ainda que se aceite no domínio privado. O elemento de transgressão é um tema imenso também. A minha perspectiva, hoje, é a de que a transgressão enquanto acto de liberdade torna-se estéril, quando não vem a ser elemento construtivo.

Logo, penso eu, transgredir por transgredir pode ser uma etapa importante, mas necessita de um fundamento consistente para se manter (ou se ultrapassar). Uma escravatura consentida pode ser interessante e fértil. No domínio do amor, ocorre-me o Masoch. Mas a transgressão masoquista, por exemplo, com o seu correlato de sadismo, conduzem apenas à destruição. Eu sei que o tema é vastíssimo, e sem dúvida pertinente. Aliás, digamos que pode até ser o cerne da questão do amor: se ele é sobretudo auto e hetero exploração da psicologia mais subterrânea do ser humano, por hipótese, voluntária e consentida; ou se ele é apenas bem-estar, felicidade e criação de actos muito simples, mas importantes do ponto de vista das consequências.

Por outro lado, tens toda a razão, deixar de amar seria a cedência total ao medo. Amar sem medo é a melhor referência. No entanto, vim a concluir que para amar não podemos ser aniquilados, ou já não estaremos cá para criar o amor.

Agradeço-te muito o comentário pertinente :)

Um beijinho grande.

vbm disse...

Ó Ana Paula,

Eu não sei especificar onde exactamente recolhi a ideia de que quando Sócrates diz a celebérrima frase «Só sei que nada sei», ele acrescenta um pouco adiante: «Salvo talvez algo sobre o Amor», e alude ao que lhe teria sido ensinado por Diotima.

Tenho pena de não conseguir especificar onde está exactamente essa passagem porque a achei notabilíssima e ignoradíssima por toda a gente!

É que ele não diz apenas que só sabe que nada sabe, mas que talvez saiba alguma coisa sobre o Amor porque Diotima lhe ensinou! :))

Quando li isto pela primeira vez, há já uns anos - tenho pena de não saber em que diálogo foi, talvez tu saibas indicar-mo com facilidade; ao fim e ao cabo, - se tudo isto não tiver sido só imaginação minha -, ele há-de ter proferido aquela ressalva no mesmo diálogo e na mesma ocasião em que profere o célebre ditado do «Só sei que que nada sei»! - fiquei emocionado, e inclusivé, socialmente e/ou na net, vanglorio-me de saber que a frase não é só aquela que todos conhecem, mas tem o acrescento sobre o amor, que todos ignoram... :)

Onde está isso, Paula!? E é ou não verdade que ele depois fala a seguir de Diotima e do que aprendeu sobre o Amor? Ou foi só imaginação minha?

Bom Natal, Paula

bjs,
Vasco

Maria Josefa Paias disse...

Ana Paula,
Depois dos textos e dos comentários fabulosos, nada mais tenho a acrescentar.
Muito obrigada.
Beijinho:)

José Rui Fernandes disse...

Disse o poder ao mundo:
- És meu!
E o mundo fê-lo prisioneiro
no seu trono.
O amor disse o mundo:
- Sou teu.
E o mundo deixou-lhe livre
toda a casa.


Rabindranath Tagore

Abraço,
José Rui

vbm disse...

Ana Paula,

Tentei ver; a referência ao "nada saber" é n'Apologia, no texto 21a-e; não há, mensão de Diotima nem do Amor; já percebi que fui eu que liguei os dois diálogos; e como n'O Banquete ele reconhece que aprendeu o Amor com Diotima, eu "extrapolei" que ele afinal «não sabia nada», excepto talvez o que lhe ensinaram sobre o Amor! :)) Como achei bonita a conclusão, imaginei que o próprio Sócrates-filósofo o havia afirmado, sequencialmente... :)

E por falar de amor, e estarmos no solstício de Inverno, olha que a história-mito de Perséfone-Proserpina é muito bela e a Igreja Católica aproveitou as festividades do Solstício para as converter na comemoração da natalidade de Jesus Cristo :)

mdsol disse...

Oh minha querida, que texto tão bonito. E como me identifico com ele, sobretudo na referência aos anjos que, seguramente, percorrem a nossa vida.... tão humanos, tão terrenos. Assim sejamos capazes de os ver.

O amor é... também colocar aqui posts destes.

Beijinho amoroso

:)))

anamar disse...

Só hoje por aqui passei...
Mais vale tarde...
Bom , e que pequnez perante uma amante da filisofia...
Uma passagem que nos toca a todos, esse medo de amar...
a vida sem amor , por causa do medo...
Beijinho Ana Paula

Regresso ao futuro

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