Quem procura verdades num contexto sobretudo filosófico, encontra-se, pela própria natureza da sua actividade, num plano que se procura exterior ao domínio político. Mas isso não significa que a sua existência decorra afastada e esquecida da sua posição no mundo "humano, demasiado humano" a que todos pertencemos. Pelo contrário, o exercício concreto da cidadania faz parte do seu plano de acção, o qual se procura distinguir de um exercício teórico e ideal - importante, mas que não abarca todas as dimensões da sua situação no mundo.
É por isso que hoje vou votar,
relembrando as palavras de Hannah Arendt que aqui ficam, não só para reflexão, mas sobretudo para o prazer de acompanhar um bem pensar.
«Sem dúvida que todas estas funções de relevância política são exercidas no exterior do domínio político. Elas requerem distanciamento e imparcialidade, libertação dos interesses pessoais, no acto de pensar e de julgar. A procura desinteressada da verdade tem uma longa história; (...).
Em virtude de ter tratado aqui da política, na perspectiva da verdade, e, portanto, de um ponto de vista exterior ao domínio político, omiti a referência, mesmo de passagem, à grandeza e à dignidade do que nela está implicado. Falei como se o domínio político não fosse mais do que um campo de batalha entre interesses parciais e antagónicos, onde nada mais contaria além do prazer e do lucro, do partidarismo e da ambição de poder. Em síntese, falei da política, como se também eu acreditasse que todas as questões públicas são comandadas pelo interesse e pelo poder, e que nem chegaria a haver esfera política, se não nos sentíssemos compelidos a cuidar das necessidades da vida. A razão para esta deformação é que a verdade factual só entra em conflito com a política apenas a este nível mais baixo dos negócios humanos, tal como a verdade filosófica de Platão chocou com a política, ao nível consideravelmente mais elevado da opinião e do consenso. A partir desta perspectiva, continuamos sem saber qual é o conteúdo actual da vida política - da alegria e da gratificação que emergem do facto de estar na companhia dos nossos pares, da acção e aparição conjuntas no espaço público, de nos inserirmos no mundo, pela palavra e pelos actos, e conquistarmos e conservarmos, assim, a nossa identidade pessoal, iniciando algo inteiramente de novo. No entanto, o que pretendia mostrar aqui é que toda esta esfera, apesar da sua grandeza, é limitada - ela não engloba toda a existência dos homens e do mundo. Ela é limitada por aquelas coisas que os homens não podem mudar à sua vontade. E é somente respeitando os seus próprios limites que este domínio, onde somos livres para agir e transformar, pode permanecer intacto, preservando a integridade e mantendo as promessas. Conceptualmente, podemos chamar verdade àquilo que não podemos mudar; metaforicamente, ela é o solo em que nos movemos e o céu que se expande por cima de nós.»
Imagens: pesquisa do GoogleEm virtude de ter tratado aqui da política, na perspectiva da verdade, e, portanto, de um ponto de vista exterior ao domínio político, omiti a referência, mesmo de passagem, à grandeza e à dignidade do que nela está implicado. Falei como se o domínio político não fosse mais do que um campo de batalha entre interesses parciais e antagónicos, onde nada mais contaria além do prazer e do lucro, do partidarismo e da ambição de poder. Em síntese, falei da política, como se também eu acreditasse que todas as questões públicas são comandadas pelo interesse e pelo poder, e que nem chegaria a haver esfera política, se não nos sentíssemos compelidos a cuidar das necessidades da vida. A razão para esta deformação é que a verdade factual só entra em conflito com a política apenas a este nível mais baixo dos negócios humanos, tal como a verdade filosófica de Platão chocou com a política, ao nível consideravelmente mais elevado da opinião e do consenso. A partir desta perspectiva, continuamos sem saber qual é o conteúdo actual da vida política - da alegria e da gratificação que emergem do facto de estar na companhia dos nossos pares, da acção e aparição conjuntas no espaço público, de nos inserirmos no mundo, pela palavra e pelos actos, e conquistarmos e conservarmos, assim, a nossa identidade pessoal, iniciando algo inteiramente de novo. No entanto, o que pretendia mostrar aqui é que toda esta esfera, apesar da sua grandeza, é limitada - ela não engloba toda a existência dos homens e do mundo. Ela é limitada por aquelas coisas que os homens não podem mudar à sua vontade. E é somente respeitando os seus próprios limites que este domínio, onde somos livres para agir e transformar, pode permanecer intacto, preservando a integridade e mantendo as promessas. Conceptualmente, podemos chamar verdade àquilo que não podemos mudar; metaforicamente, ela é o solo em que nos movemos e o céu que se expande por cima de nós.»
in Hannah Arendt, Verdade e Política
10 comentários:
Votarei, também.
Não em ideário com que concorde,
mas em oposição a facções dirigentes.
Não em jovens promessas de nova política,
mas em habituais derrotas de sempre!
Ana Paula
Excelente texto. Já votei, logo cedo. Confesso que o fiz apenas por respeito a quem tanto lutou para que tivéssemos direito a voto. As legislativas implicam uma mais profunda meditação...bom domingo
bjs
A vitalidade do tecido social português é fraca, quase se reduz, pelo menos em termos políticos, à prática do voto. Este, como hoje se viu mais uma vez, não mobiliza muito as pessoas: a abstenção é sempre grande. Esse dado é um facto importante que nunca merece a devida atenção. Esta semana ouvi uma mulher, ainda jovem, dizer, no autocarro: "Este ano pela primeira vez ao fim de muitos anos, não vou votar; vou mas é passear...". Ora, estas palavras revelam que o voto não é uma alegria, uma participação efectiva, caso contrário iria votar. O "estar com os pares", que é decisivo para a vida humana, vai diminuindo em Portugal, perigosamente, no domínio político-social. Junto de minha casa, há um parque bastante interessante. Depois das 8 horas não há lá quase ninguém, nem o mesmo, como outros espaços, é animado, pelo menos aos fins-de-semana. Instala-se o tédio. Vence o sofá e a televisão. Talvez tenha ido votar, por saber que iria sentir algum "bafo humano", alguma dinâmica social, que não chega, nem de perto nem de longe à cidadania plena. Sem o "bafo" do outro a existência torna-se algo sórdida. Fui votar bastante a contragosto - o que é mau sinal. Fiz-lo quase por dever, o que é idiota, pois actos de cidadania devem conter, também, prazer. Um beijo, descanso e bom trabalho.
:)
?
Olá Ana Paula
Ao contrário do Jota, desta vez recusei-me ir votar a contragosto. Já chegam os contragostos do dia-a-dia e muitos deles pelo descalabro dos políticos. Ao Estado nada devo, não pertenço a lado nenhum, sou marginal as vezes que me apetecer, da mesma forma que sairei dessa marginalidade quando achar que devo.
Votarei nas legislativas, talvez nas autárquicas, ontem reservei o dia para mim e fiz bem, pelo menos passei un dia feliz:))
Beijinhos e que venham as férias que parecem fugir, fugir...:)
Isabel
...:)E sejamos felizes sempre que pudermos. É um lugar comum, mas a vida é curta e é nossa obrigação pôr de lado tristezas passadas.
Quem me atura?:))
Beijinho também com muita amizade, Ana Paula
Excelente texto Ana Paula. Também votei. É um dever.
beijinho
:))
Magnífico, Ana Paula!
Obrigado.
"Conceptualmente, podemos chamar verdade àquilo que não podemos mudar; metaforicamente, ela é o solo em que nos movemos e o céu que se expande por cima de nós."
É por isso que a verdade não existe... é por isso que, embora numa "realidade" distante da nossa, não haverá coisa que não possamos mudar... no dia em que nos soubermos governar a cada um de nós suficientemente bem para que não necessitemos de políticos que nos governem... you may say I'm a dreamer... I hope I'm not the only one... :)
Eu também fui votar; acredito que a democracia tem a grande vantagem de não nos libertar do peso e da responsabilidade que implica escolher... obriga, minimamente, a pensar, a responsabilizar-nos; e tudo o que obriga a pensar é bem vindo a um mundo de seres inconscientes por natureza...
Beijinhos!
Obrigado. Por trazer Hannah aqui.
D.
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