segunda-feira, 22 de junho de 2009

Do perdão

Por motivos pessoais, tenho reflectido acerca do perdão. Trata-se de uma noção estreitamente ligada à doutrina cristã. Eu fui educada para perdoar. Mas... estranho seria não ter tido que me interrogar acerca disto (tal como acerca de tantas outras coisas...), ao longo do tempo.
A visão do ser humano como autómato incomoda-me terrivelmente. É certo que o sucesso da aprendizagem passa por alguns condicionalismos rígidos (em certos casos, verdadeiros mecanismos). Felizmente também há aprendizagens que se desenvolvem mediante uma actividade do sujeito. Claro que a educação que nos é dada é importante. Chega mesmo a ser determinante em muitas situações. Acontece que também nos educamos. Actualmente, situo-me em plena fase de tentativa de auto-educação.
Não é possível desligar o acto de perdoar do seu objecto, ou seja, daquilo que há a perdoar. Presumivelmente, existirão actos imperdoáveis. No limite, todos os actos podem ser perdoados. Mas é evidente que é muito difícil, às vezes mesmo impossível, perdoar efectivamente actos de destruição, de violência, de ódio, etc. Quer praticados de forma gratuita ou premeditada; quer praticados de forma irresponsável, indiferente, inconsciente. A própria inconsciência do acto praticado é insuficiente, inúmeras vezes, para atenuar a sua gravidade, ou a severidade com a qual ajuizamos acerca dele, sobretudo no caso de nos tocar directamente, provocando sofrimento.
Para pensar com todos os dados relevantes da questão (numa abordagem ligeira, obviamente), será preciso analisá-la no sentido inverso, quer dizer, quanto à dificuldade em perdoar que também pode incidir sobre nós e os nossos actos, neste caso, por parte dos outros.
No âmbito de uma leitura que prezo sempre muito, encontrei as seguintes palavras (que introduzem um outro sentido na questão):

«Se não fôssemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fizemos, a nossa capacidade de agir ficaria por assim dizer limitada a um único acto do qual jamais nos recuperaríamos; à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço.»
Hannah Arendt, A Irreversibilidade e o Poder de Perdoar in A Condição Humana

O que se segue a este propósito, no pensar de Arendt, é a diferença radical entre perdão e vingança. Enquanto que esta última nos mantém aprisionados, a capacidade de perdoar liberta-nos - porque introduz uma nova possibilidade de acção (quer para o que perdoa, quer para o que é perdoado). Sendo que a acção é do domínio da pluralidade (há muitos outros que existem connosco). Daí que o perdão só possa acontecer vindo dos outros, não sendo possível, em rigor, o auto-perdão.
Por outro lado, assinala que perdoar é mais fácil pelo amor, acontecendo, neste caso, de um modo distinto, na medida em que ocorre numa esfera privada. Mas, na esfera pública, que é aquela onde podemos manter a esperança acerca da humanidade, e persistir na construção de um futuro melhor, o que o amor não consegue, pode fazê-lo o respeito (pela pessoa, enquanto ser humano que é).

«Portanto, se fosse verdade, como o supõe a cristandade, que só o amor pode perdoar porque só o amor é plenamente receptivo a quem alguém é, a ponto de estar sempre disposto a perdoá-lo, não importa o que tenha feito, o perdão teria de ser inteiramente excluído das nossas reflexões. No entanto, o que o amor é na sua esfera própria e estritamente delimitada, é-o o respeito na esfera mais ampla dos negócios humanos.»
Hannah Arendt, A Irreversibilidade e o Poder de Perdoar in A Condição Humana

Na medida em que não confunda perdão com desresponsabilização (o que seria diametralmente oposto às intenções da autora), identifico-me com estas palavras - constituem fundamento para a minha posição (que não é de agora) contra a pena de morte, por exemplo. No entanto, continuo a tentar... educar-me...



Imagem: Helena Almeida, Sem Título - 1994-95 (detalhe)


22 comentários:

CS disse...

Ana Paula,

Mais uma reflexão notável que tirei distinguir autonomamente em hora mais própria.
Para já, queria pedir-lhe que passasse por aqui a levantar o que lhe deixei:
http://ovalordasideias.blogspot.com/2009/06/premio-anel-de-mobius.html
Obrigado pela sua escrita.
Carlos

della-porther disse...

Também ando pensando na minha reeducação. Mas no que se refere ao perdão, eu faço assim: não perdoo a tudo, e não sofro com isso.

Gosto muito de ler os teus textos.

Um beijo grande

Della-Porther

lobices disse...

...só um ser fragilizado pela dor saberá perdoar
...quem nunca sofreu, quem nunca conheceu a dor, não sabe o que é o perdão
...ou seja, só perdoa quem ama

vbm disse...

Notável e justa, essa correspondência do perdão ao respeito, na transposição da esfera do privado ao público.

Nunca tinha pensado nisso,
mas sempre o tinha sentido.

Por exemplo, a morte dos dois filhos do Saddam Hussein, em tiroteio derradeiro; o julgamento e a execução do tirano por enforcamento; também, a morte de Jonas Savimbi, aqui há uns anos, o corpo hirto no mato.


Nenhum destes quatro casos - excepto, em parte, Saddam Hussein (um ocidental islâmico!, derrotado por ser impossível demonstrar uma asserção negativa («Como se comprova não ter o que se não tem!?») -, me merecia qualquer simpatia.

Porém, por um sentimento de piedade ante a ineliminável fragilidade humana, é com um recolhimento meditado que consciencializo a morte que dizima os justos e os injustos.

Violeta disse...

Olá Ana Paula
muito a propósito o teu post, sobretudo numa sociedade, generalizando, claro, cada vez menos preocupada com o perdão, a humildade, a gratidão e outros valores tão essenciais à formação do indivíduo.
Sabes, sou uma felizarda porque Deus deu-me uma capacidade que muito aprecio: o dom do perdão.É verdade, faço-o com relativa facilidade. Já a humildade tenho que a trabalhar muito, sobretudo porque as pessoas continuam a confundir humildade com submissão.
Obrigada pela tua excelente partilha.

Ricardo António Alves disse...

Esplêndido, Ana Paula.
Eu também sinto o perdão como uma libertação, algo que nos livra do rancor.

Anónimo disse...

Creio que, para saber perdoar, basta termos em mente que todos erramos e que gostamos que compreendam as nossas razões. Tal como não espero que compreendam todos os meus motivos quando é a minha vez de pedir perdão, posso perdoar, aceitando as explicações, independentemente de aceitar os motivos. Não é uma problemática pacífica. Muitas vezes tenho dúvidas se o que prevalece - quando se atribui esse tal perdão - é o "amor" pelo outro ou o nosso próprio ego a fruir desse reconhecimento de clemência... Beijinho.

Porcelain disse...

Tentativa de auto-educação? Parece-me muito saudável... :) Quanto a perdoar... creio que o que interessa é agir no interesse do outro... e muitas vezes é no interesse do outro que não devemos perdoar, ou continuará a bater na mesma tecla e a insistir nos mesmos erros... perdoar é difícil, porque é difícil superarmos o nosso orgulho, mas se o superarmos e virmos para além disso, percebemos que podemos não perdoar, perdoando... não perdoar pelo outro e pelo seu próprio bem. Faço isso muitas vezes com as minhas crianças... é uma espécie de um teatrinho... mas para mim, no meu interior, fica sempre tudo melhor se o perdão de facto ocorrer... fica tudo mais limpo e desimpedido... mas pode ser extremamente difícil... estas são talvez palavras mais simplórias para explicar mais ou menos aquilo que acabas de dizer acima de forma extremamente elegante, como sempre! :D Gostei muito do post... e muito da reflexão... se todos fizéssemos este tipo de reflexão, certamente o mundo seria bem melhor...

Beijinhos!

partilha de silêncios disse...

Pensando nesta temática e na dificuldade que temos em perdoar,lembrei-me de um texto de Pessoa, referido em a "Voz do Silêncio" de Helena Blavatsky"

" Há um presente imóvel como um muro de angústia em torno.

....Há barcos para muitos portos mas nenhum para a vida não doer, nem desembarque onde se esqueça."

bjs

Anónimo disse...

gostei muito de ler, ana paula. a capacidade de perdoar é talvez aquela que faz de nós mais humanos, porque é também a mais difícil. exige de nós uma força e uma vontade que muitas vezes desconhecemos ser capazes de ter... aprendo sempre muito contigo. um grande beijinho e obrigada!

Alice disse...

Talvez o perdão passe pela aceitação do outro como um ser único. Indo mais longe, talvez vendo no outro, alguém que faz o "papel sujo" para que possamos aprender. Penso que perdoar passa por fazermos um esforço para não julgar o outro através daquilo que somos,através dos "nossos filtros"

mdsol disse...

[Não tenho tempo agora para ler o post, como deve ser. Passo só para desejar um BOM S. JOãO, independentemente de gostar, ou não, de festejar. Beijinhos joaninos Ana Paula]

Eliete disse...

Ana Paula entendo o perdão como uma libertação, como uma capacidade que precisamos constantemente construir , pois é muito difícil em determinados casos. Concordo que é preciso essa auto-educação para que possamos nos tornar seres humanos melhores. um beijo, Eliete

mdsol disse...

Cara Ana Paula

Mais uma reflexão que nos ajuda a reflectir também. E, naturalmente, nos impele ao auto-questionamento.
É interessante que algo aproximado a este ponto de vista foi o que me segurou em determinada altura da minha vida. Fui educada na religião católica onde se chega a defender que, depois da agressão, ainda se deve oferecer a outra face. Também deixei de me identificar com as práticas religiosas há muito. Posta perante uma agressão profunda que interferiu definitivamente com a minha vida profissional e pessoal, tive de pensar seriamente no assunto do perdão para poder lidar com a situação. Mas a situação é imperdoável à luz de qualquer razoabilidade. Sem sentimentos de vingança a situação comia-me os pensamentos e ocupava-me os dias. Foi neste processo que percebi que não se tratava de perdoar para seguir em frente, mas sim de não deixar que, pela perturbação que tudo me continuava a causar, permitir que esses mesmos acontecimentos me continuassem a tolher a vida. Percebido isto, foi mais fácil "aceitar" tanta imperfeição do OUTRO. Não perdoei no sentido de desculpar porque não se pode desculpar (desresponsabilizar) o que foi feito. Não esqueci para me proteger no futuro. Mas estou apaziguada com o que se passou.
beijinhos linda Ana Paula

[Não sei porque é que criei a ideia que seria da zona do Porto...]

ARTISTA MALDITO disse...

Olá Ana Paula

Como também fui educada nos princípios de uma educação baseada na cultura judaico-cristã, o perdão é para mim essencial, pois liberta. Mas, penso que perdão não deve ser encarado meramente como um gesto inconsequente, a desresponsabilização é sinal de indiferença ou de injustiça.

Perdoar sete vezes sete não é senão um acto consciente de amor e compreensão do outro.

Falta saber se o mal existe, de facto, independente do ser humano.

Estou a voltar muito lentamente e quero agradecer-lhe o seu cuidado, as suas palavras de amizade as quais me souberam tão bem.

Um beijinho grande e um abraço de amizade bem apertado
Isabel

Nilson Barcelli disse...

Perdoo com muita facilidade.
Ódio é coisa que não sinto habitualmente (dá imenso desgaste).
Mas não vou para o céu... eheheh... porque sou meio agnóstico, meio ateu.
E, tal como tu, também continuo a educar-me.
Excelente reflexão sobre o perdão querida amiga. Gostei de te ler.
Beijo.

vbm disse...

Hum... eu venho aqui regularmente. Interessante, todos se voltaram para o perdão... menos eu! que me debrucei sobre o respeito... :) Não estou preocupado, julgo eu, pelo menos. É que eu nunca tinha pensado nisto de poder haver ou de haver uma ligação entre o perdão e o respeito! E parece-me que haverá, sim. Em rigor, o que é isso de perdoar? Se justamente algo eu repudio na moral cristã é esse mandamento que estiola a agressividade, depois a coragem e por fim a vida. Um pouco como diz a Sol, "perdoar" só pode ter sentido se "não for perdoar", mas algo diferente, mais profundo e saudável. Não propriamente "esquecer" - tipo Alzheimer! brgh -, mas superar, não adoecer no ódio de uma vingança impotente, navegar para o outro lado do mundo, como num poema de Mouloudji, no fundo compreender o segredo esquecido de Lispector: - «A vida é mortal.» E isso é o respeito devido à nossa comum, frágil, humanidade.

Em suma,
perdoar não tem sentido;
tem sentido ser lúcido.

via disse...

A consciência dos nossos limites, da nossa forma de agir imperfeita quando confrontada com o dever absoluto,permite-nos perdoar, perdoar é a consequência desta consciência dos nossos e dos actos dos outros com a mesma justiça e imparcialidade. perdoar liberta.
bjos

Tentativas Poemáticas disse...

Cara e dedicada amiga Ana Paula

Passei para personalizar a oferta do Prémio que a Isabel, em parceria comigo, elaborou.
A Ana Paula merece-o.
Beijinho com ternura.
António

Mar Arável disse...

Aprender, aprender

sempre

José Manuel Marinho disse...

Colocaste uma questão oportuníssima. Se tivermos em conta que, no mundo acutal quase não olhamos para o outro, ainda é mais pertinente. Perdoar, em absoluto, é um bem; cria energia positiva - como dizes, hipóteses de saída, ao contrário da vingança. Porém, mesmo para o próprio sujeito é difícil perdoar certos actos que pratica. Isto se considerarmos que, como referes, a pessoa se auto-educa, ou seja reflecte sobre si própria. Eu gosto de perdoar, contudo há vários actos que merecem, pelo menos, uma partidinha bem pregada; todavia quem somos para julgar algo ou alguém? Se fizermos isso, é convém que, primeiro, meditemos sobre as nossas azelhices. No entanto, a vontade de perdoar é sempre um desejo de reconciliação, de religar o que foi desligado, partido, fragmentado. É útil que saibamos dar conta da nossa fragmentação, de não nos considerarmos tão unos, tão completos, como muito acontece. Somos grão de poeira que pode ser radioso ou obscuro. Alonguei-me. Coragem e energia para as aulas. Hoje entreguei a papelada das avaliações. Agora, quase só falta o frete da auto-avaliação (deculpa lembrar). Apetece-me responder aos sucessivos "Como avalia o...", "Avalio bem, obrigado. Tudo excelente." E não sei se não farei algo parecido. Beijinhos.

observatory disse...

:)


o perdão


:)

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