quinta-feira, 2 de abril de 2009

Momentos filosóficos - 4


Às vezes ainda me interrogo acerca do porquê dos filósofos questionarem o mundo. Quer dizer, suponho que uma pessoa possa chegar ao fim da sua vida, sem se ter debatido com questões ontológicas ou existenciais. Ter sido feliz e conseguir recordar o melhor da sua vida, sem se ter preocupado com coisas tais. Como, por exemplo, se o Ser é? e se o Não-Ser não é?, se o Ser é Uno? ou Múltiplo?, se existe Espírito para além da Matéria?, qual a natureza do Belo?, o que é o Bem,? e tantas, mas tantas, outras questões... Assim, de repente, podem parecer supérfluas, e não adiantar nada à nossa existência quotidiana, como se tudo continuasse a fluir do mesmo modo, com ou sem as questões, com ou sem respostas-soluções.

Afinal, porque é que, desde sempre, existiu e existe quem se preocupe com tal?!

Um outro aspecto a considerar neste meu relativo "espanto" (sim, porque ainda me "espanto", como assinalava Aristóteles) é o facto, igualmente inquietante, de existir quem tenha pautado a sua vida por princípios filosóficos, adoptando uma determinada postura ética perante a vida, levando às últimas consequências os seus ditos princípios. Recordo apenas, entre tantos casos possíveis de citar, o modo como Séneca se entregou à morte: de acordo com o seu estoicismo. Mas, afinal, vale a pena ser assim tão consequente? Ou não se trata, neste caso, de valer a pena? O que é valer a pena e o que é que, então, vale a pena? Será de seguir este raciocínio algo linear?: vale a pena o que é produtivo; o que é produtivo é o que nos beneficia; o que nos beneficia é o que nos traz bens; os bens são, geralmente, conotados com poder financeiro e poder de influências - logo, é isto que vale. Bom, na verdade, tudo isto vale. Mas reduz-se a isto o valor a adquirir? Ou existem outros valores, outros benefícios? É claro que isto é complexo de analisar. É claro que por detrás destas questões estão muitas outras...

Poderá rematar-se com a bela frase de Fernando Pessoa: "...tudo vale a pena se a alma não é pequena...". E tanto fica dito! Mas pressupõe-se, então, a alma e a sua existência. O que nos reenvia à questão, filosófica, sem dúvida, ainda que passível de ser tratada também noutros contextos.

Repetindo o mote: porque é que existe quem se preocupe com tudo isto? É certo que não conheço inteiramente a resposta. Mas, em parte, ela impõe-se-me com clareza: não é uma questão de escolha. Quer dizer, não é algo que se escolha, mas sim algo que acontece a uns e não a outros ( conclusão que avanço, mas que coloca a questão do livre-arbítrio/determinismo). Assim como alguém que pinta, ou que vive para a música, ou é que é apto a gerir finanças, não pode deixar de se entregar a tais actividades e respectivas configurações do mundo e da realidade. Do mesmo modo, há quem viva filtrando radicalmente essa realidade e auscultando-a quanto aos seus fundamentos, procurando uma configuração do todo que o torne inteligível, interrogando-se acerca dos princípios que melhor possam orientar a sua conduta...

Portanto, não se escolhe. É-se assim. E, no entanto, embora se imponha a distinção entre filosofar espontâneo e sistemático (inclusive profissional), não há quem não tenha uma postura filosófica. Mesmo aqueles que acerca de tais questões nunca se interrogam, esses mesmos possuem uma filosofia. Ainda que a um nível inconsciente, ela está lá, nas suas vidas, orienta os seus actos e implica sempre uma certa "visão do mundo". Faz parte da vida, faz parte de todos nós. Julgo que é esse, sem dúvida, o seu maior encanto.



Imagem: La morte di Seneca, Jacques-Louis David - 1773

14 comentários:

Eliete disse...

Ana Paula muito boa a reflexão que você traz para todos nós que lemos seu blog.
Manoel de Barros ,escreve que " a maior riqueza do homem é a sua incompletude(...)e
(...)não aguento ser apenas um sujeito que abre portas..."
Penso que os filósofos e todos nós que estamos sempre às voltas com tais perguntas, somos pessoas que extasiam-se perante a vida.Um beijo, Eliete

vbm disse...

Complexo, real-mente...
Não sei que diga!

Mas dou nota do que porventura
haja sido uma minha primeira
emoção filosófica. Vê :):

- Sete ou oito anos, no máximo. Pensava, de noite, na cama: «E se não houvesse nada nem ninguém, só eu, montes e vales, noite, caminhar só pela Terra!?»

Não sentia propriamente medo com este pensamento, que em todo o caso parecia-me medonho, aterrorizador, irreal; mas, e se fosse assim? respirava então aliviado por as coisas não serem assim, existirem pessoas, sol, dia, e eu não estar realmente só, no mundo.

Não sei o que pensar disto, julgo ser a reflexão mais antiga, minha, que tem uma característica, presumo, tipicamente filosófica, a saber: «E se as coisas fossem diferentes do que são!?»

Não sou filósofo, ana paula, mas tem sido uma constante da minha existência tender a imaginar mundos simplesmente possíveis, mesmo se inexistentes... :)

ARTISTA MALDITO disse...

Olá Ana Paula

É uma das questões que muitas vezes me coloco. Por que será que perco tempo a pensar e só o simples movimento de um melro pode despertar-me para questões que afloram no momento?
Não há dúvida que há quem faça do acto de pensar a sua profissão, que há quem, simplesmente, como eu, deambule apenas por interrogações às quais procuro uma resposta pessoal. Mas o acto de pensar sobre o mundo, sobre a natureza da existência é, "sem dúvida", como diz a Ana Paula, "algo que faz parte de todos nós".
E ainda bem que assim é, que cada um de nós tem uma "certa 'visão do mundo'".

Gostei muito da sua reflexão.

Beijinhos
Isabel

mdsol disse...

Ana Paula:

Que boa reflexão! Estou sem capacidade para "debater". Mas registo que, não raras vezes, o que à primeira vista pode parecer supérfluo é fundamental para concretizar a nossa dimensão humana. A filosofia, a arte em geral...
beijinho

Ricardo António Alves disse...

Tal a história do alpinista e da montanha: ela está lá, ele tem de a escalar; a vida acontece-nos, temos de a questionar.
Isto é só um comentário ligeiro ao seu texto, que merecia mais :|

Anónimo disse...

gostei muito de ler, ana paula. penso que todos nós, mesmo aqueles que têm menor postura filosófica, para usar uma expressão tua, em algum momento da vida, sobretudo em certas ocasiões menos felizes, nos interrogamos, sobre o porquê disto tudo, o porquê da vida, o porquê do sofrimento, o porquê da morte, o porquê de nós existirmos, e acredito que isto acontece, sim, sem dúvida que mais a uns do que a outros, mas ainda assim, acredito que acontece muito além da célebre idade dos porquês... beijo enorme.

Anónimo disse...

A correr, só para te te agradecer e desejar uma boa INTERRUPÇÃO. Vou estar ausente uns dias. Beijo

SMA disse...

Voltei... e voo-te em abraço
.
.
.
mas digo-te
ha a possibilidade de ser feliz sem questões existenciais ou ontologicas... diria mais, se nunca ninguem tivesse passado no deserto, ninguem saberia o que é o deserto e a sua aridez... cada um é feliz na sua medida de conhecimento, esse é o seu halão.. diria, mais felizes devem viver, aqueles que não exploram as inquietudes do espirito... mas digo como tu, onde fica o sentido do Ser... o toda a piramide axilogica?!
.
.
bjo doce

Patriota disse...

Magnífico post... uma boa reflexão que me fez recordar as palavras de Platão: "A filosofia começa na dúvida"...
....
Sobretudo entusiasmou-me a frase de Fernando Pessoa (que destacou do poema "Mar Português"). Gostei de recordar. Remete-me imediatamente para Alberto Caeiro, poeta anti-metafísica (se assim posso chamar):

"O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

- "O guardador de rebanhos"

(creio que vai de encontro ao tema, que a meu ver é bastante interessante) =)

Violeta disse...

Portanto, não se escolhe. É-se assim.
sejá lá a forma que se seja, concordo em parte com esta frase; aoutra é aquilo a que se costuma chamar lívro arbítrio: para o bem e para o mal, escolhemos nós..
bjs

mdsol disse...

[Volto para dar os parabéns atrasados à filhota e à mamã. Que grande dia de verdade...]

:))

Porcelain disse...

É verdade que muita gente chega ao fim das suas vidas sem se ter questionado acerca da existência, mas caramba... é incrível como conseguem tentar jogar o jogo sem conhecer as regras!! :-D

Acho que as questões que aí colocas não são supérfulas, bem pelo contrário... tentam ir para lá do comum e do supérfulo... acho que quando a vida corre bem, é apenas uma mera ilusão ahahah; acho, pelo menos, que quanto mais parece correr bem, menos corre de verdade... se nos ficarmos pelo superficial, pelo menos... a felicidade está nas pequenas coisas, nas que passam despercebidas aos olhos desatentos... quanto mais arregalarmos os olhos (sobretudo os da mente) encontraremos talvez mais sarna para nos coçar, mas também mais motivos para sermos felizes, coisas que me parecem andar de mãos dadas... :-))

Acho que aquilo que nos beneficia é uma boa bitola, tendo em conta que aquilo que causa dano aos demais não nos pode beneficiar, pois poderá virar-se contra nós... Claro que quando nos começamos a debruçar verdadeiramente sobre esta problemática percebemos o quão complexo pode ser agir-se "correctamente".

Acho que todos nos deveríamos preocupar com essas questões... acho que a verdadeira tristeza está em andar alienado uma vida inteira sem pelo menos se ter uma ténue teoria acerca do "porquê" das coisas.

Concordo em absoluto contigo que todos têm uma filosofia... tenho é pena que não tenham consciência dela... acho que o mundo seria um sítio melhor se a tivessem... é que, como dizes, ela impele os nossos actos... se queremos um mundo melhor deveria ser por aí que deveríamos começar...

Beijocas e muito obrigada pela visita e comentário!! :-D

Ana Paula Sena disse...

Obrigada a todos pela sua presença :)

Muito obrigada pelos parabéns, mdsol! :)

Anónimo disse...

vou discordar: na minha opinião parte (digo parte, mas a parte mais consistente que é a da tomada da pp consciência do facto) do interesse em filosofar vem do conhecimento adquirido. é isso, sou mais pro lado determinista :P

simplificando: à medida que avançamos na aquisição de conhecimentos, na escola por exemplo, é como se se abrissem caminhos na nossa existência (e pensamento claro), há quem "aproveite", tenha "curiosidade" de explorar o caminho da filosofia (no sentido do que dizes no 1º paragrafo), e há quem não aproveite. mas essa possibilidade de escolha existe pq "quem n sabe é como quem n vê"

ou não? só o primeiro filosofo é q foi primeiro, os outros tiveram a possibilidade de escolha pq tiveram "professor"

fui trapalhona?
:P

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