Nem sempre todos os que o merecem são recordados. Mas alguns são-nos particularmente caros. Especiais porque possuem um significado marcante na nossa vida.
Assim me acontece com António Alçada Baptista (1927-2008), cujo desaparecimento não posso deixar de assinalar e registar.
Já lá vai algum tempo... quando eu, jovem adulta, descobri os seus livros pela mão de uma grande amiga de sempre. Em conjunto, chegámos a fazer uma espécie de mini-clube de leitura. Debatíamos passagens e atribuíamos significados a acontecimentos presentes nas narrativas... escolhíamos frases que repetíamos interiormente vezes sem conta com prazer. A delicada profundidade da sua escrita fazia as nossas delícias. Era a sensação de sermos compreendidas. A intuição inexplicável de que alguém, algures, partilhava os nossos sentimentos, os nossos afectos, as nossas reflexões. Preferidos foram, "Catarina ou o Sabor da Maçã", "Os Nós e os Laços" e "O Tecido do Outono", entre outros.
Mas o traço mais forte da sua escrita, aquele que nunca deixou de me admirar e que jamais poderei esquecer, é o de um imenso e poderoso sentido de humanidade. Um olhar tão fraterno e humano!, pelo qual este Outono fica marcado, depois de António Alçada Baptista partir para outro lugar. Fica o desejo de o procurar mais, de o conhecer mais, de o admirar mais, de o recordar mais, mas, sobretudo, a vontade de o ler mais...
Até sempre, caríssimo! Ler-te é um acto sério, e um imenso prazer!
Já lá vai algum tempo... quando eu, jovem adulta, descobri os seus livros pela mão de uma grande amiga de sempre. Em conjunto, chegámos a fazer uma espécie de mini-clube de leitura. Debatíamos passagens e atribuíamos significados a acontecimentos presentes nas narrativas... escolhíamos frases que repetíamos interiormente vezes sem conta com prazer. A delicada profundidade da sua escrita fazia as nossas delícias. Era a sensação de sermos compreendidas. A intuição inexplicável de que alguém, algures, partilhava os nossos sentimentos, os nossos afectos, as nossas reflexões. Preferidos foram, "Catarina ou o Sabor da Maçã", "Os Nós e os Laços" e "O Tecido do Outono", entre outros.
Mas o traço mais forte da sua escrita, aquele que nunca deixou de me admirar e que jamais poderei esquecer, é o de um imenso e poderoso sentido de humanidade. Um olhar tão fraterno e humano!, pelo qual este Outono fica marcado, depois de António Alçada Baptista partir para outro lugar. Fica o desejo de o procurar mais, de o conhecer mais, de o admirar mais, de o recordar mais, mas, sobretudo, a vontade de o ler mais...
Até sempre, caríssimo! Ler-te é um acto sério, e um imenso prazer!
«Não é possível contar esta história sem que, uma vez por outra, coisas como a solidão e a morte aflorem às linhas da escrita, mas vou fazer o possível para escrever tudo isso sem solenidade. É que, a certa altura, a vida é outra e o próprio passado não é bem aquilo que a gente viveu porque, em cada tempo, há uma forma de olhar, e aquilo que vivemos não está no mundo, está na maneira como olhámos para ele.
É no Outono que a gente é capaz de reparar que a vida não é banal não obstante o nosso quotidiano ter sido de uma banalidade atroz. Acredito que é possível descobrir pedaços de luz no meio de tudo isso. São coisas destas que me levam à convicção de que a vida para que somos feitos não é, de modo nenhum, aquela que andámos a viver. Em rigor, o nosso destino poderia parecer trágico: por um lado, caminhamos inexoravelmente para a solidão, por outro, temos como futuro o esquecimento. Tenho muito a convicção de que somos seres em formação, pois o projecto humano não aponta para aqui. Penso é que ele nos vai sendo revelado por pequenas nostalgias de coisas ainda não vividas, que se exprimem por intuições avulsas e, apesar de tudo, pelo halo poético do mundo, que seria mais visível se acertássemos a maneira como olhamos para ele. Depois também há, felizmente, aqueles que já nasceram mais à frente no caminho do futuro. A consciência da complexidade do viver leva-me a pôr de parte as amarguras e as melancolias metafísicas. Por um lado, sinto que o tempo e o universo me olham com indiferença e distância e que, para eles, a minha história pessoal poderá ser considerada como a daqueles pobres que eu vi a dormir, lado a lado, ao longo dos passeios de Bombaim, quando, uma noite, seguia de táxi para o aeroporto da cidade. Por outro, tenho a simultânea convicção de que tudo o que é importante se forma a partir da consciência da nossa história pessoal, por mais pobre e monótona que ela seja.»
É no Outono que a gente é capaz de reparar que a vida não é banal não obstante o nosso quotidiano ter sido de uma banalidade atroz. Acredito que é possível descobrir pedaços de luz no meio de tudo isso. São coisas destas que me levam à convicção de que a vida para que somos feitos não é, de modo nenhum, aquela que andámos a viver. Em rigor, o nosso destino poderia parecer trágico: por um lado, caminhamos inexoravelmente para a solidão, por outro, temos como futuro o esquecimento. Tenho muito a convicção de que somos seres em formação, pois o projecto humano não aponta para aqui. Penso é que ele nos vai sendo revelado por pequenas nostalgias de coisas ainda não vividas, que se exprimem por intuições avulsas e, apesar de tudo, pelo halo poético do mundo, que seria mais visível se acertássemos a maneira como olhamos para ele. Depois também há, felizmente, aqueles que já nasceram mais à frente no caminho do futuro. A consciência da complexidade do viver leva-me a pôr de parte as amarguras e as melancolias metafísicas. Por um lado, sinto que o tempo e o universo me olham com indiferença e distância e que, para eles, a minha história pessoal poderá ser considerada como a daqueles pobres que eu vi a dormir, lado a lado, ao longo dos passeios de Bombaim, quando, uma noite, seguia de táxi para o aeroporto da cidade. Por outro, tenho a simultânea convicção de que tudo o que é importante se forma a partir da consciência da nossa história pessoal, por mais pobre e monótona que ela seja.»
«Às vezes estou tentado a pensar que um povo pobre, assente sobre a força de um texto sagrado, nos pode dar mais sossego e serenidade do que as descobertas do progresso. Isto pode ser verdade mas sinto simultaneamente de que não é o que está inscrito no projecto humano. Não vale a pena zangarmo-nos com a nossa própria impotência porque nada se resolve com palavras. Porque a gente chega a um ponto donde pode ver alguma coisa através das ideias, das crenças e dos símbolos. É verdade que são expressões naturais da vida mas, contrariamente ao que pretendem, não compreendem nem explicam a vida.»
«Tenho dificuldade em dizer que perdi a fé mas tenho também que confessar que aquilo que me prendia a Deus era precisamente o medo, o "temor de Deus", porque o Deus que me ensinaram metia muito medo à gente. Não quis encarar de frente essa realidade mas não há dúvida que eu tinha sido feito a poder de interditos, de culpas, de perdões.
Estou certo de que a minha maior tentação foi a da razão, que não parava de pôr em questão tudo aquilo que eu vivia e me provocava a simultânea incapacidade de aderir seja ao que for. É disto que se faz um céptico: o que não se sente capaz de acreditar senão naquilo que vê e pode conhecer com as suas próprias mãos. (...) O meu problema é que eu, no fundo, não acreditava em nada: era só fiar-me na palavra "deles" e "eles" diziam coisas que a minha cabeça começava a recusar. Não há dúvida: eu estava a cair na armadilha do conhecimento racional.
Aqui, em rigor, eu deveria ter deixado a Igreja, mas acontece que o peso dos sentimentos impedia que eu passasse à prática os ditâmes da razão.
(...) A minha inquietação vinha desta luta interior entre a minha razão que me mandava sair, e o medo, que não me deixava abrir a porta para a rua.
Depois, tomei consciência de que o mundo da fé, como tudo o que por aqui se passa, estava profundamente ligado ao mundo dos afectos. É que, a par de todas as dúvidas levantadas pela razão, havia outras coisas: uma ânsia de generosidade e de estar solidário com os outros que implicava a existência de grandes fraternidades.
(...) Como vêem, nada disto era tão simples como "eles" queriam que fosse. Tudo fazia parte do mundo da complexidade de quem suspende a segurança da menoridade e vai descobrindo que a vontade de Deus é que a gente deve principiar por saber quem somos.»
«Tenho dificuldade em dizer que perdi a fé mas tenho também que confessar que aquilo que me prendia a Deus era precisamente o medo, o "temor de Deus", porque o Deus que me ensinaram metia muito medo à gente. Não quis encarar de frente essa realidade mas não há dúvida que eu tinha sido feito a poder de interditos, de culpas, de perdões.
Estou certo de que a minha maior tentação foi a da razão, que não parava de pôr em questão tudo aquilo que eu vivia e me provocava a simultânea incapacidade de aderir seja ao que for. É disto que se faz um céptico: o que não se sente capaz de acreditar senão naquilo que vê e pode conhecer com as suas próprias mãos. (...) O meu problema é que eu, no fundo, não acreditava em nada: era só fiar-me na palavra "deles" e "eles" diziam coisas que a minha cabeça começava a recusar. Não há dúvida: eu estava a cair na armadilha do conhecimento racional.
Aqui, em rigor, eu deveria ter deixado a Igreja, mas acontece que o peso dos sentimentos impedia que eu passasse à prática os ditâmes da razão.
(...) A minha inquietação vinha desta luta interior entre a minha razão que me mandava sair, e o medo, que não me deixava abrir a porta para a rua.
Depois, tomei consciência de que o mundo da fé, como tudo o que por aqui se passa, estava profundamente ligado ao mundo dos afectos. É que, a par de todas as dúvidas levantadas pela razão, havia outras coisas: uma ânsia de generosidade e de estar solidário com os outros que implicava a existência de grandes fraternidades.
(...) Como vêem, nada disto era tão simples como "eles" queriam que fosse. Tudo fazia parte do mundo da complexidade de quem suspende a segurança da menoridade e vai descobrindo que a vontade de Deus é que a gente deve principiar por saber quem somos.»
«Porque este processo de sedução é longo e corresponde, muito possivelmente, à passagem de uma certa adolescência - que muitos teimam em viver até à morte - e à desejada serenidade que alcançaremos no dia em que conseguirmos fazer as pazes entre tudo o que está dentro de nós. Eu diria até que é nesse momento que se faz a passagem de um Superego para uma consciência responsável. Porque um Superego tem muito que ver com o tal código de uma tribo, e a consciência, por sua vez, é uma autonomia que nos permite fazer os nossos próprios juízos e as nossas próprias leis. Todo este processo é sobretudo muito longo e gerado à custa de muita dor porque são muito fortes as leis que nos acolheram e que muitos insistem, entre medos e ameaças, em dizer que são imutáveis, como se não existisse o movimento do mundo. E, sobretudo, elas são a base da nossa segurança. Mas a verdade é que, só depois de atravessar tudo isto, é que a gente começa a viver.
Estas coisas, que hoje me enternecem, naqueles tempos empolgavam-me porque eram aquilo a que chamavam "viver numa digna e nobre angústia".»
«Não tenho medo da morte porque a vida eterna não começa depois da morte. Começa aqui na terra, perante a escolha que fazemos de acompanhar com amor as alegrias e as tristezas dos outros. Deus não terá que nos julgar. O julgamento é feito todos os dias perante aquilo que andamos a fazer. Também não me impressiona morrer sem compreender o que é Deus. Se eu O compreendesse é porque não era Deus.»
«Não tenho medo da morte porque a vida eterna não começa depois da morte. Começa aqui na terra, perante a escolha que fazemos de acompanhar com amor as alegrias e as tristezas dos outros. Deus não terá que nos julgar. O julgamento é feito todos os dias perante aquilo que andamos a fazer. Também não me impressiona morrer sem compreender o que é Deus. Se eu O compreendesse é porque não era Deus.»
«Vou escrever-te mais um bocadinho. É que me faltava dizer-te que gostei muito da vida apesar de ter visto tanto sofrimento. É que vi muitas provas de amor. O nosso, o que os outros me tiveram, o que pude ter pelos outros. Isto dá-nos esperança para saber que é possível um mundo de amor. Vivi só para esse mundo e nenhum outro me interessa. Fico espantada quando penso nas pessoas que vivem completamente desligadas dele. Tenho a sensação que ainda não entraram no mundo verdadeiro, que têm andado por aí enganadas e que só aqueles que vivem do amor as poderão salvar com o amor que lhes derem mesmo sem elas quererem. Tu dizias-me uma vez que temos que aprender a amar os ricos e os poderosos. O amor não precisa de ser correspondido. A gente ama-os e pronto.»
9 comentários:
Tens razão, Ana Paula, quando mencionas o sentido de humanidade de AAB. Era isso que ressaltava de todos os seus textos.
Beijos
...prometo que depois volto para ler. por agora...
adoro a tua "neve" a cair, adoro esta música...
..quando as palavras não dizem o que somos...
beijo
enorme
por agora!
António Alçada Baptista, ficará na nossa memória, sempre revelou um profundo sentido afectivo, dizia ser dos poucos escritores que não tinha vergonha dos afectos. O Tecido de Outono é um livro muito interessante.
um beijo
vim e li.
...
que pena não o conhecer...:(
nunca um livro dele veio ter comigo até agora.
obrigada Ana Paula
um enorme beijo
também tive uma amiga assim :)
Parece que os grandes homens acabam sempre no esquecimento... =(
Mas não será tanto, pois a sua obra torna-os imortais! =)
Esses que lutam e vivem merecem sempre uma homenagem, mesmo que curta, aqui vai a minha, com a Sophia de Mello Breyner Andreson:
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
em verdade lhe digo quye o que me interessou neles foi uma certa forma de praticar a tolerancia... uma especie de compaixao.
do resto "sei pouco". n é hora pra falar nisso.
espero que esteja bem
beijo
Olá, Pitucha! :)
Fico feliz ao ver-te por aqui!
É exactamente essa capacidade de um olhar humano, bem humano, é isso quefaz tanta falta!
Espero que estejas bem. Um beijinho!
Querida Mié: obrigada pela tua atenção :)
A meu ver, os livros dele são de ler e reler...
É óptimo também ter amigos/as com quem partilhar aquilo de que gostamos.
Beijinhos!
Partilha de silêncios: agradeço também a tua atenção :)
Foi o escritor dos afectos que fazem parte de todos nós, sem dúvida. O Tecido do Outono talvez seja o meu preferido dele. Coloca grandes questões, a par de um óptimo enredo.
Beijinhos!
Daniel:Obrigada :)
Esse é tão só um grande poema e um dos meus preferidos desde há imenso tempo. Ainda me recordo de o ler às minhas filhas para as sensibilizar para a poesia. É intenso e belíssimo! Tão simplesmente, profundo, como o são todas as grandes verdades que nos interpelam.
Observatory: estou bem e retribuo os votos.
A compaixão é, sem qualquer dúvida, muito importante. Por sinal, trata-se de um conceito que muito aprecio, embora julgue que actualmente passa por ter um sentido algo deturpado e, segundo alguns, ultrapassado. Não concordo, claro. E AAB soube bem falar disso.
Claro que agora é sobretudo hora de guardar o que de bom nos deixou.
Obrigada pela atenção!
Um grande escritor.
P. S. Enviámos convite e e-mail.
Abraço lusitano!
festa cesariana
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