sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Sermões - 1


"(...) hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. (...) O pregar que é falar faz-se com a boca; o pregar que é semear faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. (...) Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. (...) e o que entra pelos ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão seriam muito outros."
in Sermão da Sexagésima, Padre António Vieira

Alturas há, nas quais poucas leituras conseguem ter o efeito algo hipnotizante que leva a prosseguir, parágrafo após parágrafo, o confronto com o texto. Acontece-me isso, agora, quando a necessidade de lidar com um número extra-ordinário de papéis, palavras, textos, composições, fichas, sínteses, registos, actas, formulários, índices, estatísticas, etc...; quando esta necessidade rodeia a existência diária... acontece-me um esgotamento face à palavra. Quando ela se torna técnica (ainda que também o seja), e perde a sua dimensão ontológica e estética (ainda que não de modo irreversível)... Quando ela se torna uma hiper-construção do mundo... Perante essa súbita invasão, fundida com ecos fortissimos de crise financeira, apresentada de um modo tão mais virtual que real (ainda que realidade concreta); aí acontece viver-se num universo saturado de informação. E o esforço necessário para a reorganizar conceptualmente é a prova cabal de que nos consumimos.

Nada combateu mais o desgaste vivido nos últimos tempos, do que a leitura (solta e descontraída) que tenho feito dos Sermões do Padre António Vieira. Sem qualquer pretensão de estudiosa do autor, admiro-o e recomendo-o como antídoto para qualquer cansaço mais ou menos cerebral, para qualquer momento de maior ou menor desencanto.
Uma pedrada certeira num charco nada límpido e nada claro, mas com a clarividência dos génios. Que o era!




Imagem: Extracção da pedra da loucura - Bosch


19 comentários:

Xarroque disse...

Bom post Ana Paula! Também gosto muito do nosso Sábio padre António Vieira.
Beijinhos.

angelá disse...

Não podia ser melhor a escolha e o remédio. Acho que vou tomá-lo já.

Bj

SMA disse...

Ontem contemplava "As tentações de Santo Antão" também Bosh e encontrar aqui Padre António Vieira tão actual
.
.
.
homens do tempo
.
.
bjo

Anónimo disse...

Era-o, sim senhora! De vez em quando também o invoco... E, sim, se não António Vieira, algo que nos leve a textos que dêem algo à alma, à guisa de panaceia contra as pústulas que nestes tempos nos têm infectado... Beijo!

Ricardo António Alves disse...

Excelente conselho! Fico com vontade de segui-lo...

Frioleiras disse...

Bosch............a minha loucura ... uma das minhas loucuras...

observatory disse...

a sociedade do espectaculo no seu melhor: as tragedias da bolsa e o ronaldo.

tem toda a razao

uma cascata de palavras. uma parvalheira

gostei da sugestão.

importante remar contra

temos que criar uma tribo nova:)))))

Patriota disse...

Vivemos numa era dominada pelo "capitalismo das palavras" (como dizia Sophia de Mello Breyner), hoje parece que as palavras ou a "força das palavras" perdeu grande parte do seu sentido.
"Já gastámos as palavras pela rua (...)

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus." - Eugénio de Castro
E digam lá se não é verdade, as palavras estão gastas, e já que falamos no sábio Padre António Vieira "Imperador da língua portuguesa" (Fernando Pessoa), basta dizer: "Para falar ao vento bastam palavras; para falar ao coração são necessárias obras."

Bom post, adorei!

http://triunfodarte.blogspot.com/

isabel disse...

Divinal. Literalmente!

um beijo grande Ana Paula. Saudades!

Mar Arável disse...

Que pena

já nem os peixes

ouvem pregões

Gostei

Violeta disse...

Olá Ana
Gostei do teu "sermão"; com efeito passamos a vida a dar sermões mas a fazer pouca obra...
Bjs

Frioleiras disse...

o Miguel Sousa Tavares (filho da Sophia...)
dizia (e bem) que vivemos (vivíamos...) no
"capitalismo de casino"....

Bandida disse...

ainda bem que o relembras. andamos tão esquecidos...

beijo AP

casa de passe disse...

Sermões?

Também por aqui?

Ai, minha Nossa!!!


(Loulou, sem a beata da Nini, sem a Alice, sem o Avô e sem o safado do João)

Mié disse...

Mas que tiro certeiro o teu nos tempos tumultuados que correm.

Precisamos sim de o ler para lembrarmos o que é realmente importante, o que é essencial na vida

________obras, precisamos todos de fazer obra muito mais que dizer palavras. A palavra sem obra é palavra morta, e nós falamos demasiado, todos nós!!

Obrigada pelo post tão oportuno, e por Bosch.

Um beijo

enorme

manhã disse...

para chegar ao coração são precisas obras e de facto este mundo anda cheínho de palavras ao vento! boa lembrança!

isabel mendes ferreira disse...

da sereníssima sabedoria.



e da tua clara ideia sobre a mesma.



límpida. como tanto de ti.


________________obrigada A.P.


abraço....terno.

(mesmo)

João Videira Santos disse...

Transcrito na precisão do texto, o que ele me faz lembrar...

Estou em crer que a maioria dos Portugueses desconhece a obra do padre António Vieira e...é pena!

Bom post. Gostei!

LM,paris disse...

Ana paula, ontem ouvi aqui na France-culture,une petite histoire...
um poeta volta-se para Mallarmé e diz-lhe:" Nao sei como fazer, tenho muitas ideias para escrever poemas, mas...nao consigo", responde Mallarmé__" les poèmes s'écrivent avec des mots pas avec des idées".
Se hoje o Padre AV voltasse ao mundo, dava-lhe uma coisa mà...
a arte no estado gazoso, ou gazosa...
nao hà " obra" mas concepto...c'est celui qui dit qui est"...artiste.
Qual obra, qual carapuça!
EU decido o que é arte, eu aponto e é, toco e faço ou desfaço.
Marcel, marcel...il m'a tué!
DUchamp oui, une fois...so uma vez é que conta, jà chega de baldes, um azulejobranco disfarçado de denùncia ao vide de l'aboslut du terme total du néant...o ready-made jà nao se suporta a ele proprio!
Obra sim, espertos, nao!
Era o manifesto da Peter Pane da manha!!
Beijinhois sem conceptos ( nem complexos) en français dans le texte!!
LM

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