domingo, 15 de junho de 2008

Aritmética Emocional



"Se me perguntarem se acredito em Deus, sou forçado a responder: Deus acredita em mim?"

Este é um filme com assinaláveis qualidades e algumas limitações. Adapta o romance de Matt Cohen com o mesmo título e a realização é de Paolo Barzman. Suspeito que o livro será melhor do que o filme, como muitas vezes sucede. Mas esta exposição da narrativa, segundo linguagem cinematográfica, poderá ter um impacto mais imediatamente dilacerante face ao problema que aborda.
Assim que surgiu a primeira imagem no écran, senti um toque de Bergman. Um leve toque apenas... Mas que me deliciou. Um desenrolar centrado em diálogos foi mais um elemento de uma certa atmosfera que não pude deixar de reter.

Numa primeira análise, aquela que nos é dada a conhecer mediante a sinopse, o tema é o do Holocausto. E suas consequências. A partir das consequências, estamos mais próximos da verdadeira questão. Mas não exactamente ainda com ela.

A problemática que este filme trata é actual e, provavelmente, para muito boa gente, tem carácter de urgente: Até que ponto é legítimo esquecer o passado, particularmente, esquecer um certo passado? Deitá-lo para trás das costas? E seguir em frente...?

Esta questão desdobra-se em inúmeras outras, igualmente provocadoras: O sofrimento humano deverá ser glorificado, considerado sagrado, fonte de continuado sentimento de culpa? Culpa não só dos que cometeram e cometem crimes contra a humanidade, mas culpa também, sobretudo, daqueles cujo destino não foi sofrer de igual modo? Os que tiveram sorte, e não foram vítimas, terão direito a viver ignorando as atrocidades infligidas a outros? Por outro lado, terão que viver carregando sempre o peso do horror que as vítimas inevitavelmente transportam consigo?

O direito ao esquecimento (le droit a l'oubli) é a problemática que esta história encerra. Aquela que tem estado no centro de um aceso debate no nosso mundo dito civilizado, especialmente na Europa e, nomeadamente, em França. Uma ideia que parece ter nascido a partir da informatização da sociedade. Com repercussões a vários níveis...



Este suposto e polémico direito ao esquecimento está, portanto, no centro do filme, para lá das emoções e sua aritmética. A dada altura, torna-se óbvio que o objectivo é rejeitar este direito a esquecer o sofrimento e o horror das vítimas do Holocausto. Será preciso manter vivo na memória o passado para as futuras gerações. É preciso fazer História e transmiti-la. Apesar desse claro posicionamento, o filme alerta para o preço a pagar que a memória (e esta memória, em especial) implica: a dificuldade de conviver com o passado, e com a responsabilidade que toda a condição humana tem que assumir por tal crime, entre tantos outros que haveria a assinalar.



É possível viver sem tantas sombras e tantos fantasmas? Ou os fantasmas terão que (re)viver connosco? É possível ser feliz, mesmo com eles? Encontrar a felicidade numa aritmética das emoções, parece ser a via a seguir... Ou seja, racionalizar o que sentimos sem ignorar a força e a densidade dramática das nossas emoções; vivê-las sem deixar que nos destruam... comunicar para exorcizar... acima de tudo, sentir inteiramente mas não destrutivamente. Talvez essa a razão pela qual o filme nos apresenta um olhar ora distanciado, ora aproximado.

Um grande elenco com excelentes interpretações. Uma realização com alguns entraves e obstáculos significativos, mas de que gostei. Interessante e, por vezes, belíssima fotografia.
Fica a sensação de que as emoções em causa tinham mais para dizer no filme...
O magnífico Max Von Sydow a marcar a presença da memória no cinema e a compor uma memória humana a reter.
A ver!

Mais informação sobre o filme e o realizador aqui

Mais informação sobre memória e esquecimento aqui



18 comentários:

Art&Tal disse...

toca num assunto delicado.

eu tenho sido atento aos muidos sofrimentos que por aí se espalham.

nao é legitimo que ainda haja quem morra com meia duzia de graos de trigo na palma da mao
enquanto outros comem até rebentar.

nao gosto da brutalidade ideologica... militar... laboral

nao sei conviver com isso

é claro que umas boas conversas com sexo ao meio, uns centros comerciais... uns perfumes
ajudam a limpar a memoria e a má consciencia de muita gente.

bom...

voce sempre atenta

e eu vou ver o filme

saude

angelá disse...

A minha primeira reacção à temática que aqui colocas, independentemente do filme que não vi, édizer claramente: NÃO. Não pode haver direito ao esquecimento. E não fico com problemas de consciência de paracer anti-democrática. Creio que estamos bem na hora de nos questionarmos sobre esse conceito.
Mas também digo que a memória OBRIGATÓRIA do passado, não tem que ser, nem deve, uma justificação para a "sacrossanta culpa judaico-cristã" que nos ata as mãos e o pensamento.
A memória permitirá o conhecimento , a compreensão e a melhor capacidade de olhar e construir o futuro.
(desculpa o arrazoado matinalm as o teu blog tem o condão de provocar o debate de ideias o que infelizmente não é muito comum.)

Beijos

Frioleiras disse...

Racionalizar o que sentimos será um meio, diria quase o único, na sociedade que, como diz, nasceu a partir da informatização.

É uma forma de sobrevivência, talvez...

Muitos esquecimentos vieram, provavelmente, a partir daí mas, pergunto eu, não temos o DEVER de procurar na única vida que dispomos ser o mais possível felizes?

Muitas vezes a memória de todas as podridões que o ser humano fez e continua a fazer ... ao ser humano, ajudará alguém?

Há que ser lúcido mas, quando NADA se pode fazer, a demasiada lucidez não descambará no masoquísmo?
Não sei... é uma pergunta que lhe faço e que faço a mim mesma....

E ajudar-nos-á a ser mais felizes? o hedonismo poderá parecer um pecado mas não será uma forma de se adjectivar a felicidade, tão difícil de obter na sociedade actual?

(obrigada por me ajudar a "memorizar" o filme em questão. decerto que o verei...

... embora se me perguntarem se acredito em Deus, sou forçado a responder: em Deus acredito em mim... não sei...)

Frioleiras disse...

E... equeci-me de lhe dizer...

lindíssimo a escolha que fez com este quinteto de Schumann que acasala tão suavemente com a sua descrição .......

eu, com as minhas frivolidades, acompanharia o comentáro que lhe fiz com a German Dance No. 1 in C-Major de Schubert...

(mas adoro schumann e gostei muito de o ouvir enquanto a lia)

manhã disse...

vou ver, certamente até porque o título é sugestivo e a temática atraente! bjo

Ana Paula Sena disse...

Obrigada pela atenção, Art&Tal.
É efectivamente um assunto delicado. Acho o filme muito interessante precisamente por tocar nele.

Obrigada pelo óptimo "arrazoado", amfm. Só pode ser bem-vindo!
Concordo contigo. Nem esquecimento, nem culpa.

Obrigada, Frioleiras, pela reflexão e pela questão.

Se me permite, não posso considerá-la frívola. Quem conhece o Quinteto de Schumann não pode sê-lo. Tal como quem sugere a German Dance No.1 in C-Major de Schubert. Por acaso, é uma óptima ideia: seria muito interessante podermos acompanhar comentários com trechos musicais. Diria muito de todos nós!

Por sinal, tenho que dizer: Schubert é o meu compositor preferido, depois de muitas e longas horas de audição, pelo mero prazer de ouvir. Mas ando a educar o ouvido para Schumann...
Se bem que...há pouco tempo tive oportunidade de estar presente no concerto dado pelo Schostakovich-Ensemble no CCB, onde pude assistir a uma magnífica interpretação de Beethoven e dos seus Trios para piano, violino e violoncelo... e fico dividida... há tanta música boa, verdade?

Quanto à questão que deixa ficar... pena que não se possa debater efectivamente o tema neste espaço pouco propício. E talvez eu não seja a pessoa indicada para responder melhor. É meu dever remeter para os verdadeiros sábios, como Epicuro, por ex., que tão bem versou sobre o hedonismo.

Mas se me pergunta a mim, que sei eu, afinal, destas complexas questões? Eu, Ana Paula, apenas posso relembrar algumas citações de gente ilustre, tais como:

«O prazer não é um mal em si; mas certos prazeres trazem mais dor do que felicidade.» - Epicuro

«Os homens podem ter várias espécies de prazer. O verdadeiro é aquele pelo qual eles deixam outro.» - Proust


Na verdade, o prazer é importante, mas, a meu ver, a questão está, não nele, mas naquilo em que encontramos prazer. O que dá prazer a uns, pode não dar nenhum a outros.

Quanto a masoquismos, não os defendo, sabendo que todo o sadismo existe ligado a um masoquismo.
São realmente assuntos muito complexos... Só devemos pensar neles sem que isso nos impeça de Viver.

Muito obrigada pela pequena reflexão conjunta que me deu o prazer de esboçar! Foi um prazer!

manhã: acho que vais gostar! :)

Luís Galego disse...

Ou os fantasmas terão que (re)viver connosco?

infelizmente parece que sim...dava jeito um interruptor para as emoções e para tudo mais. De qualquer modo, o filme está aqui muito bem escalpelizado...

Anónimo disse...

querida ana paula, ainda não tive oportunidade de ver o filme, aliás ando muito desactualizada no que ao cinema diz respeito, mas a forma como aqui abordaste o tema deixa-me quase familiarizada e realmente curiosa com o enredo, já que os fotogramas são belíssimos. obrigada por mais esta sugestão tão magicamente comentada por ti. um grande beijinho.

Bandida disse...

a memória é tramada. mesmo quando se fecham os olhos. há que pensar. dá que pensar. é para pensar.

o teu blogue está excelente!

saudades....

Unknown disse...

ana paula, um beijinho pela visita e pelo que me dizes.

e-ko disse...

não vi o filme, e há muitas memórias... uma coisa é não esquecer as atrocidades que os homens cometeram fazendo sofrer outros homens. com que direito? para não deixar outros homens cometer atrocidades semelhantes.

e, no nosso espaço interior, temos o direito, a bem da nossa saúde mental e relativa felicidade, de arrumar mais ou menos à mão as nossas memórias mais ou menos dolorosas ou felizes.

depois. há a questão dos vestígios virtuais que deixamos na net e que nos escapam completamente. é um vasto problema e só agora começou o debate... posso apagar os meus blogs hoje, mas tudo aquilo que lá editei durante mais de 2 anos escapará totalmente ao meu controle... não deveria eu ter o direito de exigir que todos esses vestígios sejam apagados?

excelente tema

beijo

vieira calado disse...

É sempre bom ouvir opiniões.
Obrigado

isabel mendes ferreira disse...

emocionalmente contigo! raios e coriscos!

(de antologia)

ANNNNNNNNNNNNA PAUUUUUUUUUULA.

clap clap clap.


e montanhas de beijos!

Ricardo António Alves disse...

Fiquei cheio de vontade de ver o filme e rever o Max Von Sydow. Excelente post.

Lord of Erewhon disse...

Mais um que tenho que ver.

Beijinhos.

Anónimo disse...

Ontem fui ver o filme. Marcou-me muito...

Maria Eduarda Colares disse...

Este blog está um must.
Quanto à memória e ao esquecimento, não vi o filme em questão, mas a polémica que se tem travado preocupa-me pelo comodismo que supõe. Sou pela história e contra o autismo complacente.
beijinhos

LM,paris disse...

Bonjour, temos o DEVER de guardar e defender a memoria.
Nao sei se o "plus jamais ça" sera possivel de obter, acho que nao.
As proprias victimas da Shoa nao conseguiram falar durante anos, com medo que o mundo nao acreditasse nelas. E senao se escreve, se nao se julga, se nao se fala, testemunha, hà muita gente que quer apagar essa ou outras atrocidades e o século vinte deixou marcas terriveis, vamos de ter viver com elas, quanto mais nao seja, para que essas pessoas recuperem o proprio nome.
Vivo em Paris se calhar nao ouvi, mas o direito ao esqueçimento...nao estou a ver,falamos, falou-se do contràrio, nao estou a ver um debate com esse tema.
Vamos esqueçer para ir dar uma volta mais levezinhos durante a nossa vida...estamos ligados ao mundo ou andamos a fazer de contas que somos capazes de " fazer de contas que..."?
Nao consigo nem perceber que se possa questionar isso.
Desculpe.
Pol-Pot, Uganda, e antes Hiroshima, Nasagata, e a guerra nos Balcas, a do Iraque...e...mais?
Nao pudemos levar nos ombros o horror que se passa e se passou no mundo, mas temos o dever de conceder o nosso tempo, a nossa atençao, a nossa compaixao aos que sofreram e sofrem. Nada disso tem a ver com culpabilidades, enquanto que ser humano vou à rua e vejo a sensibilidade da vida a brotar a todo o instante, tudo é possivel, e o pior encaixa também nesse espaço.
So nao sabe quem nao quer saber, e isso para mim é terivel!!!
Desculpe falar de mim aqui neste sensivel questionamento, mas em 1981 fui andar , nao posso dizer de outra maneira, andar em Auschwitz, andei là quatro, cinco horas. O campo estava ao abandono, quase.
Nao é dizivel, descriptivel, é impossivel descrever .
No grupo de dança onde eu estava so quatro quisemos ir, os outros, a grande maioridade nao se interessava e trataram-nos de "masoquistas".
Com as pessoas que foram, o silêncio foi a maneira de partilhar esse " indicible".
Nunca falo desta experiência, so quando sinto uma dor bem forte, serà que um dia as pessoas vao esqueçer?
Um abraço de Paris.
Adoro Bergman, e o seu actor fétiche.
Nao conheço o filme.
LM

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