A ordem é um aspecto importante da realidade, ainda que saibamos ser o caos igualmente enriquecedor. Uma exigência extrema em relação a aspectos organizativos pode ser contraproducente, e isto nos mais variados contextos. O seu oposto - ou seja, o caos, que aqui interpreto como desorganização - pode resultar numa situação igualmente negativa (digamos, não produtiva).
Postas estas considerações preambulares, registo a leitura de um livro magnífico, que até à data me tinha escapado, quase imperdoavelmente para mim-própria: "A Confissão de Lúcio", de Mário de Sá-Carneiro. Ora, isto pode não estar relacionado com..., mas, na verdade, há quem sinta, como eu, que tudo está ligado a tudo. Nesse pequeno-grande livro, o autor refere-se recorrentemente a sentimentos de repugnância - e acrescento eu, de uma quase-náusea. As repugnâncias podem resultar de inúmeros aspectos da existência, podem até ser psicanaliticamente interpretadas e explicadas. Pois podem, mas não pretendo aqui aprofundar o assunto. É apenas algo muito pessoal e simples o que registo: há na vida real motivos para consideráveis sensações de náusea. Assim acontece nesta actual situação do nosso país, a qual não parece nada saudável. No entanto, há uma ressalva importante quanto a isto: eu não sei se o país real é aquele que nos chega aos olhos e aos ouvidos. Mas, se quanto ao país real tenho algumas dúvidas, quanto à vida real tenho algumas certezas. Sei seguramente, por exemplo, que a vida real envolve trabalho e empenhamento. Sei que a vida real está longe de ser fácil, que decorre entre esforços e desgastes. Obviamente refiro-me ao comum dos mortais, grupo ao qual pertenço com bastante orgulho. E o que pensa o comum dos mortais destas notícias estrondosas e escandalosas, preocupantes e inquietantes do nosso país (ir)real? O que pensa de uma vida constantemente contaminada e desinquietada por ambientes de suspeição? Pois o que ele/ela pensa é que após cumprir o seu horário de trabalho, de Trabalho, repito, nesse momento mereceria algo melhor sobre o que se passa cá fora. Algo efectivamente mais digno e mais sério acerca do país onde vive. Algo que reflectisse a verdadeira realidade que conhece. Sobretudo isso. Porque se a verdade é sempre complexa, se se cria e se fabrica, antes dela, antes dessa grande Verdade, estão algumas outras pequenas verdades irredutíveis. O paradoxo da verdade é este mesmo: falar das pequenas verdades pode ser muito mais complicado.
A outra face da lua, aquela que liricamente é tão tratada como sedutora porque oculta, essa é também aqui a desorganização mental a que muitos ficam sujeitos se quiserem estar in com o que acontece. Este tipo de desorganização, ou de caos, é algo que não se vê, mas que existe. Nem sei mesmo se as quebras na produtividade e no desenvolvimento não passarão grandemente por este caos ao nível das sinapses a que os nossos cérebros estão expostos. Redes neuronais que fervem para descobrir a solução de mistérios criados para nos entreter; problemáticas virtuais que mais parecem puzzles concebidos com as peças erradas, e que jamais criarão uma imagem coerente, enquanto os reais problemas ficam à espera... Olhando melhor, tais projecções vêem-se em toda a sua plenitude: magnificentes construções formais sem conteúdo. O mundo é um lugar vazio.
Efectivamente, o comum cidadão merece mais do que estas histórias de enredos duvidosos. Do que a suspeição a envenenar e a lei ser de brincar. Do que o alimento de apetites vorazes e espectaculares que se não tiverem disto, não têm mais nada, provavelmente. Daquilo que as guerrinhas de bastidores vão congeminando e expurgando cá para fora sem critério.
Sem dúvida, é bom que algo eventualmente oculto conheça a luz do dia. Mas o oculto mais profundo continua como tal. Pois aquilo que seria consideravelmente consequente desocultar, a realidade social do nosso país, essa continua por analisar e esmiuçar em larguíssima medida. Sim, mas isto são aspirações algo naïves. Portanto...
Portanto, espera-se, no mínimo!, que alguém ponha ordem nisto.
Postas estas considerações preambulares, registo a leitura de um livro magnífico, que até à data me tinha escapado, quase imperdoavelmente para mim-própria: "A Confissão de Lúcio", de Mário de Sá-Carneiro. Ora, isto pode não estar relacionado com..., mas, na verdade, há quem sinta, como eu, que tudo está ligado a tudo. Nesse pequeno-grande livro, o autor refere-se recorrentemente a sentimentos de repugnância - e acrescento eu, de uma quase-náusea. As repugnâncias podem resultar de inúmeros aspectos da existência, podem até ser psicanaliticamente interpretadas e explicadas. Pois podem, mas não pretendo aqui aprofundar o assunto. É apenas algo muito pessoal e simples o que registo: há na vida real motivos para consideráveis sensações de náusea. Assim acontece nesta actual situação do nosso país, a qual não parece nada saudável. No entanto, há uma ressalva importante quanto a isto: eu não sei se o país real é aquele que nos chega aos olhos e aos ouvidos. Mas, se quanto ao país real tenho algumas dúvidas, quanto à vida real tenho algumas certezas. Sei seguramente, por exemplo, que a vida real envolve trabalho e empenhamento. Sei que a vida real está longe de ser fácil, que decorre entre esforços e desgastes. Obviamente refiro-me ao comum dos mortais, grupo ao qual pertenço com bastante orgulho. E o que pensa o comum dos mortais destas notícias estrondosas e escandalosas, preocupantes e inquietantes do nosso país (ir)real? O que pensa de uma vida constantemente contaminada e desinquietada por ambientes de suspeição? Pois o que ele/ela pensa é que após cumprir o seu horário de trabalho, de Trabalho, repito, nesse momento mereceria algo melhor sobre o que se passa cá fora. Algo efectivamente mais digno e mais sério acerca do país onde vive. Algo que reflectisse a verdadeira realidade que conhece. Sobretudo isso. Porque se a verdade é sempre complexa, se se cria e se fabrica, antes dela, antes dessa grande Verdade, estão algumas outras pequenas verdades irredutíveis. O paradoxo da verdade é este mesmo: falar das pequenas verdades pode ser muito mais complicado.
A outra face da lua, aquela que liricamente é tão tratada como sedutora porque oculta, essa é também aqui a desorganização mental a que muitos ficam sujeitos se quiserem estar in com o que acontece. Este tipo de desorganização, ou de caos, é algo que não se vê, mas que existe. Nem sei mesmo se as quebras na produtividade e no desenvolvimento não passarão grandemente por este caos ao nível das sinapses a que os nossos cérebros estão expostos. Redes neuronais que fervem para descobrir a solução de mistérios criados para nos entreter; problemáticas virtuais que mais parecem puzzles concebidos com as peças erradas, e que jamais criarão uma imagem coerente, enquanto os reais problemas ficam à espera... Olhando melhor, tais projecções vêem-se em toda a sua plenitude: magnificentes construções formais sem conteúdo. O mundo é um lugar vazio.
Efectivamente, o comum cidadão merece mais do que estas histórias de enredos duvidosos. Do que a suspeição a envenenar e a lei ser de brincar. Do que o alimento de apetites vorazes e espectaculares que se não tiverem disto, não têm mais nada, provavelmente. Daquilo que as guerrinhas de bastidores vão congeminando e expurgando cá para fora sem critério.
Sem dúvida, é bom que algo eventualmente oculto conheça a luz do dia. Mas o oculto mais profundo continua como tal. Pois aquilo que seria consideravelmente consequente desocultar, a realidade social do nosso país, essa continua por analisar e esmiuçar em larguíssima medida. Sim, mas isto são aspirações algo naïves. Portanto...
Portanto, espera-se, no mínimo!, que alguém ponha ordem nisto.
12 comentários:
Ana Paula,
o teu texto é tão ternamente triste , real e muito bom, como tudo o que escreves.
Não resisto a fazer um link para O Mar à Vista.
Beijinho e procura pausas para olhar para o que possa haver de bom, porque o país real e o político, não são muito diferentes... Está tudo ligado.
Boa semana, "dolce Paola"
Um dia li, da Antígona, o clássico de Jerry Mander, Quatro Argumentos Contra a Televisão: uma demonstração cristalina de que a televisão 'suga' o cérebro. Pela razão simples, humeana, :), de que passam a ser as ideias que originam as impressões, em vez de as impressões gerarem ideias! :)
Com o marketing da política partidária a ajudar, o problema ainda mais se agrava, numa ominosa descerebração das massas manipuladas por pão, circo & passes de demagogia indecorosa.
CATHARSIS: resumindo e concluindo: à nossa volta, minha amiga, é tudo tão falso, tão farisaico, que custa a crer que possa haver remissão...
Gostei deste texto onde a mensagem está rodeada de dor pelo ambiente que nos cerca, ambiente de suspeição, de corrupção, de farisaísmo, de mentira...
BEIJOS DE
LUSIBERO
Ana Paula,
Também gostava de ver colocada alguma ordem nisto. O problema é que não pode ser uma ordem qualquer e, conforme muito bem refere, o vácuo domina, a inquietação aumenta e começamos a não saber para onde nos virarmos, porque, perante as alternativas, será "pior a emenda que o soneto".
Felicito-a pelo texto. Dá voz ao que sinto e pressinto no quotidiano, mas, simultaneamente, lamento que seja verdade o que diz e gostava que não fosse. Todavia, é.
Um grande abraço.
É inquietante a irrealidade da realidade que nos querem mostrar!
É mais fácil controlar as pessoas massificadas, padronizadas, com o pensamento dirigido. E as pessoas acomodam-se... "pensar para quê se há quem pense por nós?"
Parabéns por esta magnífica reflexão que nos inquieta e interpela!
Um abraço,
José Rui
Ana Paula,
Renovo sempre o meu gosto por visitar esta casa! Os últimos textos confirmam.
Quanto a esses últimos textos, há um grande segredo num dos comentários acima, que reza: "passam a ser as ideias que originam as impressões, em vez de as impressões gerarem ideias". O segredo é... que sempre foi assim, embora as filosofias dominantes lidem mal com isso. Lidem mal com o "argumento do cérebro na cuba".
Ana Paula,
Estamos fartos mas continuamos a não querer reconhecê-lo porque, simultâneamente, é admitir que também nós falhamos no nosso projecto.
Mas o que mais dói é verificar que naquele país que almejamos, naquele estado de direito de uma Justiça tão sonhada, sucedem atropelos manobrados numa penúmbra nauseabunda.
Não me importa quem seja, nem o cargo que tenha, o que me importa é que, como diz o Mário de Sá-Carneiro nesse magnífico livro, que eu também descobri tarde, num dos últimos parágrafos do texto:
"Antes, não quiz porém deixar de escrever sinceramente, com a maior simplicidade, a minha estranha aventura. Ela prova como factos que se nos afiguram bem claros são muitas vezes os mais emaranhados; ela prova como um inocente, muita vez, se não pode justificar, porque a sua justificação é inverosímil - embora verdadeira ".
Um abraço.
Anamar: mil obrigadas pela gentileza e solidárias palavras :)
...também pelo link.
Depois de um dia cinzento, às vezes o sol costuma brilhar de novo. Tomara que assim aconteça, não só na natureza, mas também na vida social.
Um beijinho grande.
Vasco (vbm): muito agradeço o teu interessante comentário, em especial por tão bem recordares o David Hume.
Um grato abraço :)
Maria Ribeiro: muito obrigada pelas palavras solidárias!
...e pela alusão aos fariseus :)
Um beijinho grande.
Austeriana: infelizmente, também sinto ser verdade. E concordo consigo: que ordem, afinal? Uma questão e tanto. Não pode, de facto, ser uma ordem qualquer. Mas, o que sinto é ser preciso às vezes uma espécie de ordem prévia, se é que tal é possível. Uma base de estabilidade, a partir da qual se possa construir algo mais sólido; sem mordaças mas com responsabilidades. Essa ordem prévia talvez atenuasse certos efeitos perniciosos de um caos que já se prolonga há demasiado tempo.
Muito obrigada pela reflexão conjunta. Enriquece o que escrevi.
Um grande abraço :)
José Rui Fernandes: muito obrigada pela visita e pelas palavras de estímulo que deixou ficar.
De facto, a saída da menoridade, ao nível do pensamento, pode ser uma perspectiva demasiado trabalhosa para alguns (ou muitos!). E com tanta gente que se oferece para pensar por nós, ainda mais difícil se torna oferecer resistência e manter a lucidez.
Um grato abraço :)
Porfírio: muito obrigada pela visita e pela atenção. É sempre muito bem vindo :)
Devo dizer que os seus textos, sim, são sempre momentos de grande lucidez e perspicácia na análise.
O segredo que refere é, sem sombra de dúvida, importante. Mais uma vez, ficarei a pensar nele.
Creio significar que a complexidade no domínio social é muito maior do que pode parecer. Daí que quase nada seja, a este nível, absolutamente simples. O que as mentes "fabricam" pode ser a nossa realidade. Ainda que eu tente sempre "espreitar um pouco para fora da cuba" :)
Um grato abraço.
Miguel: muito obrigada pelo seu comentário. E por essa citação magnífica do Mário de Sá-Carneiro, tão elegante, quanto profunda.
O livro termina mesmo assim, com essa advertência relativamente à complexidade que envolve o acto de julgar.
Foi um prazer partilhar um pouco consigo esta excelente leitura :)
Um grato abraço.
Ana Paula,
Tudo que escreve sintoniza perfeitamente com aquilo que penso, mas eu nunca o escreveria tão bem. Começando pela náusea, que Mário de Sá-Carneiro, exprime nesse romance, vai descrevendo uma situação de náusea que é sentida por muita gente.
Só tenho acompanhado as notícias de esguelha e agora com o meu maço de cigarros aqui à minha frente, ocorre-me dizer: Ouvir notícias bloqueia os neurónios e provoca náuseas e um grande pessimismo...
Como se diz popularmente isto está tudo «escaqueirado»...
Bjs,
Manuela
Querida Ana Paula,
Tinha saudades de ler-te. Um texto tão profundo, tão bem escrito, sentido e infelizmente tristemente real.
Um mundo é um lugar vazio, às vezes!
Ai, Ana Paula:
a vida é dinâmica... e eu que acredito nisto. mas as minhas sinapses levam-me a vê-lo cada vez mais como um lugar inedecifrável, texto sem coerência, sem coesão. Ando toda baralhada. Até já pensei em deixar de ligar às notícias e a todo este vórtice de "tricas e dicas".
Gosto imenso de ir lendo o que escreve, porque faz sentido.
Beijinho
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