sábado, 28 de abril de 2012

Lisboa by night


Não, não é o metro em hora de ponta. É mesmo apenas uma rua da Baixa de Lisboa. 


...e o que é que esta gente toda está a fazer na rua?
bom... as pessoas em Lisboa convivem e divertem-se!

Fotos de A.B. - obrigada!

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Song for Che

A minha noite de 24 para 25 de Abril teve contornos de jazz. E não pode ser por acaso, pois ao entrar na vida adulta, nesse então ainda jovem pós-25 de Abril, estive bastante mergulhada nele. Também eu era jovem e um dos acontecimentos mais marcantes dessa época tinha lugar com o célebre Festival de Jazz de Cascais. Na verdade, eu já chegava um pouco tarde - para beber daquela aura fantástica, a dos anteriores festivais com o Luís Villas-Boas na sua fase mais dinamizadora. Mas ainda consegui beber um bocadinho desse inesquecível ambiente, com o melhor do free jazz e também do blues. Ouvi contar muitas histórias - e também vi e ouvi o B.B. King ao vivo! (mais tarde). Não consigo esquecer-me. Um dos episódios que se contava com certa paixão, era o do caso Charlie Haden, passado em 1971, no primeiro festival  (em ambiente de Primavera Marcelista) - e que encontrei aqui bem documentado. Vale a pena conhecê-lo e relembrá-lo. É preciso recordar (para sempre) que o 25 de Abril nos trouxe liberdade. E o que é a liberdade? Também tudo o que é desejável para viver um ambiente cultural rico, diversificado e verdadeiramente frutífero. Aquele que semeia novas ideias e abre a porta à mudança para mais e para melhor. 
Por exemplo, o mais interessante no chamado free jazz é o improviso. Por analogia, na vida, acontece anteciparmos o que vai acontecer, mas a nossa previsão é sempre incompleta e limitada. Na realidade, é preciso improvisar: não estamos completamente certos do que vem, mas o melhor de tudo é saber que vivemos como quem pode escolher e criar. A cada instante. 
Este é o meu primeiro post pós-25 de Abril 2012. Portanto, sobre o mais difícil, o que continua... Infelizmente, o meu 25 de Abril foi sobretudo marcado pela morte do Miguel Portas. É em memória dele ainda que deixo ficar esta Song for Che (com Ornette Coleman e Charlie Haden). 

Há Jazz!



quarta-feira, 25 de abril de 2012

Miguel Portas [1 Maio 1958-24 Abril 2012]


Quando os que lutam por um mundo melhor, partem, o mundo fica mais pobre. Frontalidade e empenho, exigência de uma postura ética na política, sensibilidade multicultural, dedicação, luta - tudo o que faz um verdadeiro cidadão do mundo, e um pouco do muito que vai perdurar na minha memória acerca de Miguel Portas.

Excelente trabalho, Miguel! 


segunda-feira, 23 de abril de 2012

Dia do Livro


Portanto, é o dia de todos os meus amados livros. Dos que tive, dos que tenho, e dos que terei. 




sábado, 21 de abril de 2012

olhar o céu

Imagem Daqui

Deitei-me no fundo do barco e fiquei-me a olhar para o céu. A noite estava simplesmente magnífica. Saltei de constelação em constelação e pensei nas estrelas e no tempo em que as estudávamos e nas tardes passadas no planetário. De repente recordei-as tal como mas tinham ensinado, alinhadas por ordem de intensidade luminosa: Sirius, Canopo, Centauro, Vega, Capela, Arturus, Orion... E depois pensei nas estrelas variáveis e no livro de um amigo querido. E depois nas estrelas que se apagaram e cuja luz ainda chega até nós, e nas estrelas de neutrões, no estádio final da evolução, e no frágil raio que emitem. Disse baixinho: pulsar. E como se a tivesse despertado com aquele murmúrio, como se tivesse accionado um gravador, chegou até mim a voz anasalada e fleumática do professor Stini a dizer: quando a massa de uma estrela agonizante é superior ao dobro da massa solar, não há estado da matéria capaz de deter a concentração, e esta continua até ao infinito; a estrela deixa de emitir radiações, transformando-se assim num buraco negro.
Nocturno Indiano, Antonio Tabucchi


quinta-feira, 19 de abril de 2012

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ela pediu-me ajuda. ela pediu-me por favor. e o que eu penso disto tudo dizia-te se tivesse tempo. a verdade é que não tenho tempo para dizer tudo e tenho tempo demais para dizer nada. em redor de cada um há uma espécie de muro e essas construções monolíticas não são para brincadeiras. ela abriu a porta da casa lá dentro onde tudo ardia. ela precisa de ajuda. lá fora circulam carros. o mundo gira. o tempo dá volta aos dias. olhas um rosto quando o fitas. há pessoas que gritam que calam e outras que calam que gritam. ela precisa de ajuda. eu sei pouco. o que fazer. o mundo é um lugar brutal. os cérebros queimam neurónios. elas deliram contigo. hum. respirar dói na tua ausência. ela precisa de ajuda. o mundo é imenso. eu não consigo dar-lhe um nome. mas pressinto-lhe o tamanho. eu tenho que ajudar. há um oceano de sons. acho que te ouvi. na calada da noite. a terra rodou sobre mim. estou envolta num lençol de tarefas. ela precisa de ajuda. há papéis soltos sobre a mesa. guardados de mim. as horas contêm caos. ligo-lhe amanhã. é preciso dirigir os passos. devo erigir actividades. sublevar adormecidos. ela precisa de ajuda. organizo tudo amanhã. somos todos um. quero. sinto-me átomo. há-de surgir um dia. dissolvo-me no todo. hoje não. mas ela precisa de ajuda. amanhã. penso-te. há milhões de pessoas. cansa-me contá-las. falarei com ela. sinto-te. quero vê-la sorrir. as pessoas deviam ser felizes ao menos uma vez. um mínimo de vida. exigido por lei. falo-lhes disto amanhã.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

afinidades electivas

J. W. Goethe por Andy Warhol

não sei qual é a altura exacta na vida de uma pessoa, momento no qual chega a compreender profundamente que o mundo contém muitos tipos de pessoas. compreender não é ainda talvez a melhor expressão para designar o facto de chegarmos a esse ponto, onde é possível uma certa aceitação dessa multiplicidade de modos de ser. enfim, não encontrei outra melhor. 
um blogue é um espaço para dizer o que pensamos, o que sentimos, o que vivemos, do que gostamos, ou não. e é também um lugar que serve para omitir, porque só fica o que queremos, salvo registos do inconsciente, e etc e tal... a verdade é que sinto vontade de registar essa percepção cada vez mais nítida e clara de que as pessoas têm distintas visões do mundo e diferentes formas de as expressar, diferentes objectivos de vida e vias para os alcançar. para lá de tudo isso, o interessante do caso é perceber simultaneamente que não temos nada a ver com umas pessoas, mas que temos muito a ver com outras. afinal, refiro-me às afinidades electivas no seu sentido mais amplo, relembrando Goethe. 
portanto, é algo assim. à medida que sabemos muito melhor o que não queremos, descobrimos aqueles que nos completam e de quem precisamos para que a vida seja um tempo melhor. felizmente, há-os sempre. quanto aos outros, só posso desejar-lhes a felicidade à sua maneira, dado que, não sendo a minha, a pressuponho igualmente legítima. mas isto dava para outro pequeno ou longo discorrer, sobre esse tal caso bicudo que é a tolerância. de uma coisa estou certa: é bom que existam diferenças, próximas ou longínquas. magnífico é que existam afinidades.
por outro lado, às vezes penso: quando for grande, quero ser importante. mas acontece que eu já sou crescida. e qualquer um que me conhece sabe que eu não sou importante. em contrapartida, sei que posso ser importante. a diferença entre as duas acepções do termo é certamente clara para quem sabe Ver.  tenho esperança de que fique sempre claro.
vem tudo isto também a propósito da observação do mundo. observar é preciso.

domingo, 15 de abril de 2012

utopia realista


revi hoje, pela... não me recordo exactamente... talvez quinta ou sexta vez, o filme Noites Brancas, um dos magníficos de Visconti. quando começou, fui olhando vagamente, enquanto ia pensando que não o iria ver todo de novo. a constante antecipação parecia inevitável. mas, a pouco e pouco, o encanto dos diálogos e aquela luz branca a crescer devagarinho tornaram-se irresistíveis. 
quando o final chegou, tudo no filme me luzia como se fosse a primeira vez. o branco a comer as sombras mais e mais. revejo: os enamorados caminham encostados um ao outro. o casaco dele pelos ombros dela. a neve mansa em redor... os saltos nos sapatos negros a desaparecer na brancura do chão. a ponte é pequena e aproxima o momento da separação. percebe-se um vulto. um homem alto vestido de negro. e ela larga tudo - o sobretudo caído e aberto sobre a neve. corre para a ponte. o homem mito espera. basta-lhe emanar a sua aura. está tudo mais que determinado. beijam-se. um doce e intenso branco oscila no ar. o homem real chora. aconchega o casaco escasso junto ao corpo. o frio entra-lhe nos ossos. lentamente caminha sem rumo vagueando pelas ruas brancas numa noite branca. e eu sem deixar de pensar o tempo todo no casaco largado sobre a neve. no quanta falta ele lhe faria. no frio que devia estar. na loucura de esquecer o casaco. na importância dele. na... tudo isso, sim. até que finalmente ele volta. apanha o casaco. sacode-lhe a neve. veste-o, para meu alívio. agora pode passear quente pelas ruas brancas numa noite branca com um companheiro branco ao lado dele.
há filmes que nunca se vêem da mesma maneira.

apontamentos


sexta-feira, 13 de abril de 2012

Mahler

Acho sempre muito estranho que a maioria das pessoas, quando fala de "natureza", só pense em flores, passarinhos e aromas dos bosques. Ninguém conhece o deus Dionísio, o grande Pã. Pois bem! Aí têm uma espécie de programa: ou seja, um exemplo de como faço música. Sempre e em toda a parte é só a voz da natureza! 
Mahler (a propósito da sua Terceira Sinfonia) in Mahler - Vida e Obra, Stephen Johnson





quarta-feira, 11 de abril de 2012

atmosferas


às vezes sou levada a tentar descrever atmosferas, ainda que não goste delas. uma atmosfera, neste sentido que pretendo algo figurado, é uma espécie de envolvente que respiramos enquanto inteiros, talvez aquilo que absorvemos de um modo vago e difuso também com o nosso corpo. para mim, o interessante de tentar descrever uma atmosfera, passa precisamente por tentar tornar definido e preciso o que está no ar e que parece escapar. enfim, algo da espécie processo lento e gradual de consciencialização. um tema estimulante que fica para outra oportunidade.
ora, o que é que está no ar? acho que sei. no entanto, é-me difícil dar-lhe um nome. mas um génio cinematográfico como Hitchcok foi capaz de criar e recriar magistralmente atmosferas. portanto, socorro-me do seu brilhantismo para discorrer sobre o momento actual. 
um dos grandes filmes deste mestre do suspense, Os Pássaros ou The Birds (1963), consegue fazer-nos sentir a presença de uma inexplicável ameaça que paira à nossa volta, uma atmosfera de potencial ataque e de perigo iminente corporizada na figura de um sem número de pássaros que circundam e definem um cerco cada vez mais apertado. presença constante, lá estão eles, aproximando-se assustadoramente de nós - isto, uma vez que acabamos por nos situar dentro do filme (proeza de que só alguns movie makers são capazes). enquanto a vida parece decorrer com normalidade... ocupados todos nas suas tarefas diárias, a atmosfera adensa-se. os pássaros são cada vez mais numerosos. à volta formam uma massa escura e perturbadora. há uma sensação de pesado silêncio. o mundo é um lugar estranho. tal como o amor - que faz parte do mundo.
é impossível esquecer a célebre cena da cabine telefónica. nela, Tippi Hedren/Melanie Daniels apercebe-se finalmente da dimensão da ameaça. da sua realidade opressiva e da sua monstruosidade. tudo parece tornar-se agressivo. o céu azul cobre-se de pontos negros que escapam esvoaçantes e atacam esfomeados. as vagas de atacantes tornam-se cada vez mais espessas. onde encontrar refúgio? bom, quanto ao mais, é ver ou rever o filme, um dos que merecem sempre renovada atenção.


hoje, já estamos na cabine telefónica assistindo incrédulos a um cenário voraz. amanhã, o mais tardar, é preciso procurar abrigo. a propósito: no filme, sabemo-lo, sobrevive muita gente. com marcas para a posteridade, como não podia deixar de ser. 


o prazer de pensar com tantos dos bons

Alice - ilustração de Arthur Rackham

Primo Levi - (...) Mas gostaria de regressar ao que Gödel disse. Àqueles que o acusaram de ter destruído a solidez dos fundamentos da matemática, ele respondeu que, ao contrário, tinha revalorizado o papel da intuição. Por falar em intuição, o que é que, além de Borges, lhe deu tudo o que é cultura não científica - isto é, arte, literatura e música?

Tullio Regge - Eu tenho uma relação anómala com a música. Sou um maníaco de música clássica. Ignoro o rock, que, na verdade, me dá uma dor física. Talvez eu goste tanto de música porque ela não me foi ensinada no liceo. Mas o meu pai obrigou-me a ter lições de piano e alguma coisa ficou comigo. Toco piano muito mal, mas divirto-me. Para mim, a música tem a ver com algum tipo de elementos inconscientes. Os físicos, mas não só, preferem Bach. Não me sinto capaz de explicar ou quantificar esta preferência: o que é que a profissão de físico possa ter a ver com a música de Bach, eu realmente não sei. Talvez um certo ritmo natural, ou talvez, como tem sido repetido há anos, a construção bachiana seja matemática. Talvez lá no fundo Bach tenha tido intuições de um tipo matemático, que, contudo, não podem ser representadas adequadamente pelas leis da harmonia. O mesmo se pode dizer, de alguma forma, de Mozart. Não posso passar sem música, mas não saberia relacioná-la explicitamente com a minha profissão. Certo é que, se pudesse reincarnar, escolheria ser músico. 
Quanto à literatura, (...), interessei-me muito pelo Doutor Fausto, de Mann, que se centra, de facto, no tema da música. E, também, em O Homem sem Qualidades, de Musil, que teve uma educação matemática. Outro matemático é Lewis Carroll, o autor de Alice. Em física, existe um conceito designado por "grupo de Carroll", e ele descreve um mundo-limite, ficcional, numa tentativa de imaginar o que sucederia se se pudesse descrever um fenómeno numa escala em que a velocidade da luz fosse nula. Chamou-se-lhe "grupo de Carroll" em homenagem à famosa imagem paradoxal do coelho que está sempre a correr e permanece no mesmo sítio.
Diálogo sobre a ciência e os homens, Primo Levi e Tullio Regge

 

terça-feira, 10 de abril de 2012

quando um blogue funciona como arquivo, ou seja, sempre


é preciso que o arquive: se alguém te disser que já viu tudo, duvida - nunca se viu tudo. mas se alguém te disser que há certas coisas cuja repetição é indubitável, acredita - há coisas que nunca mudam.


quinta-feira, 5 de abril de 2012

há qualquer coisa de outono nesta primavera





incidência da luz

coisas pouco belas enfrentavam a manhã
que não as desfazia
ao longo da travessa estreita e colorida
as mesas inclinadas na calçada irregular
pratinhos trepidantes com cafés
diziam tudo
à vida escorregadia

então um sopro de anima
e houve de ti imagem
como se sentado na esplanada
fosses um tal de lisboeta
e eu de perto
como se à luz raiante da manhã
o grande mundo me mostrasses
ainda infantil brilhante
no fundo do caleidoscópio

depois
as folhas cintilaram horas
e a vida perturbou a calçada
uma carrinha vermelha passou
embalada fosforescente
a luz ou eu
voou um corropio
e um pássaro gritou
sem ti

[mais tarde à noitinha por entre a escuridão
escrevi-te: ensina-me a prender luz nas mãos]


A.P.
 

em busca de um ponto imaginário

Pintura de Tsai Chia (século XVIII)

«Ultrapassarmos os limites de nós próprios, apercebermo-nos de qualquer pessoa ou de qualquer coisa como fazendo parte de um grande conjunto de pessoas e de coisas, identificarmo-nos com o maior número possível de pessoas, em suma, vermos o mais longe e o mais claramente possível: é assim que o romancista se torna semelhante àqueles pintores chineses antigos que escalavam montanhas até ao pico para captar o sentido poético de vastas paisagens. Estudiosos da paisagem chinesa, como James Cahill, fazem notar aos entusiastas ingénuos que o ponto de vista abrangendo tudo lá do alto num simples relance e tornando essas pinturas possíveis é, de facto, imaginário, dado que nenhum pintor pinta realmente no pico de uma montanha. Da mesma maneira, a composição de um romance implica a procura de um ponto imaginário a partir do qual se possa ver o conjunto todo. Este vantajoso ponto imaginário é também o lugar a partir do qual se pode ver mais claramente o centro do romance.»
Orhan Pamuk, O Romancista Ingénuo e o Sentimental


terça-feira, 3 de abril de 2012

vejamos pois

Mark Rothko, Yellow, pink and pale lilac to dark pink (1950)

em tempos, quando olhava uma pintura de Rothko, ficava algo decepcionada. belas cores e pouco mais eu via então. mais tarde, o meu olhar era sempre atraído por quadros assim, subitamente preso de uma espécie de apelo que eu sentia numa certa atmosfera de serenidade. algo quase imperceptível, no entanto. depois, a pouco e pouco, percebi que havia neles uma aura de provocação que tinha eco em mim. o vazio, se é que existe, provoca-me certo horror. parece estranho. afinal, há cenários tão repletos e densos como absolutamente difíceis de observar e apreciar. em vão pensar assim: os quadros de Rothko pareciam-me sempre inquietantemente vazios. talvez por isso, vê-los consistia em atravessar duas fases de olhar: primeiro, a serenidade do minimalismo colorido, o conforto de existir tão pouco para ver, a tranquilidade da redução ao essencial; depois, vinha um activo e inevitável preenchimento do quadro com elementos criados por mim, evidentemente, e quem sabe numa total adulteração da obra. é por isso que, hoje, estas intrigantes pinturas "entram" sempre nos meus olhos plenas de significado e carregadas de histórias. de certo modo, são agora um espaço onde me encontro em pura actividade.
o que me traz a tudo isto, afinal, é a questão do vazio. creio que na verdade ele não existe. se olhar atentamente, aquelas barras de cores num quadro de Rothko mostram-me não sei se tudo, mas, pelo menos, revelam-me muito. o que vejo provavelmente não está lá desde logo, mas, se eu o vejo, existe de algum modo. e o que vejo introduz novos elementos na realidade. objecção a considerar: o que vejo é pura imaginação. mas sem essa caminhada à beira do precipício não há acto criador possível. quanto do mundo mais concreto, mais real, existe porque foi imaginado e o é continuamente? eu diria que muito. o quadro de Rothko, por exemplo, só por si não conta. eu sem o quadro de Rothko seria outra. apesar dessa ausência, continuaria viva, mas não seria a mesma pessoa. o que é relevante, portanto, dá-se no encontro entre mim e o tal quadro. e todo o encontro, se acontece e envolve um ser humano, pressupõe imaginação.
afinal, prosseguindo a meditação que Rothko sempre suscita, é de considerar uma outra objecção: que interesse pode ter (e que utilidade existirá) num ver meramente individual? que sentido pode ter ver aquilo que mais ninguém vê? mas... quanto não há de um olhar comum, construído ao longo do tempo e da história, em cada olhar individual? do mesmo modo, será de perguntar: quanto não há de tantos olhares individuais e únicos nessa longa e complexa teia que chega até nós agora, criada em comum desde os confins dos tempos? apesar disso, é certo que não vemos todos exactamente o mesmo. é esse o terreno fértil em que nos movemos. é esse o lugar onde se constitui a verdadeira antítese do vazio. e é dessa tensão entre o que só um vê e o que todos vemos que se arquitecta o nosso mundo.
ver é sempre um desafio. o vazio só existe quando o olhar não vê. o vazio só existe quando o que se mostra não é visto, ainda que seja olhado. sinceramente, fico bem mais descansada: o mundo é realmente denso.


um Eu para o século XXI

Fotograma do filme Matrix

qual o momento? em que momentos? quantas as vezes? em que o Eu digital domina? controla? quanto do Eu real é Eu digital? - pergunta. há um Eu que respira liberdade fora do digital mas que incorpora em si mesmo essa sua construção - responde. um Eu que transcende limites e que é livre exactamente porque os conhece - acrescenta. um Eu que controla porque é controlado - conclui. bem-vindo à metamorfose do Eu.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

a procura do espectro esquivo

Foi um dos livros mais interessantes e mesmo instrutivos que li nos últimos tempos. Refiro-me a O Grande Inquisidor de João Magueijo. Nele, há uma série de elementos diversificados que condimentam a agradável e estimulante leitura. Isto, para quem goste de uma espécie de mistura entre policial, mistério/suspense, física nuclear, etc. Um dos aspectos deveras enriquecedor do livro, é o que se prende com questões relativas a uma certa história da ciência. Os cientistas surgem-nos como seres verdadeiramente humanos, ou seja, repletos de contradições. Com defeitos a par da sua genialidade. E com inúmeras inquietações ou momentos de crise. Na verdade, para lá do tempo actual, crise não é um termo estritamente económico, como é óbvio. Por exemplo, situações de crise/fases problemáticas vividas por Ettore Majorana, ou por Franco Rasetti, e que aqui registo. Foram certamente reais momentos de dúvida - ou da espécie do que é uso designar por problemas existenciais. Terão pouca importância, para o curso da história? Não sei. Mas lá que existem, existem. Sobretudo, vivem-se.
Ettore Majorana (1906-1938)

Já foi sugerido que Ettore teria perdido a fé na ciência, que se teria tornado sensível à suposta contradição entre a ciência e a religião; que a sua tragédia é como a de Pascal, o filósofo francês que rejeitou a ciência em nome da religião. Mas, a meu ver, Ettore pode ter perdido a fé em muito mais do que a ciência. Pode ter perdido completamente a fé na racionalidade.
João Magueijo, O Grande Inquisidor


Franco Rasetti (1901-2001)


(...) Rasetti, o principal assistente de Fermi em experiências, estava a atravessar uma crise de fé científica (a primeira de muitas). Num capricho, abandonara recentemente as suas experiências para passar umas férias prolongadas em Marrocos, «em perseguição desse espectro esquivo, a esperança de encontrar algures algo que lhe desse satisfação e o preenchesse», de acordo com Laura Fermi.
 João Magueijo, O Grande Inquisidor


Regresso ao futuro

Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...