segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Estranhos de passagem

Foi aqui que escolhi uma citação de Kierkegaard para fazer uma auto-descrição. Não foi por acaso. Na verdade, o que citei encerra uma espécie de dúvida ou de conflito que se me apresenta no último instante, em diversas situações, interrompendo esse movimento imediato com o qual mergulhamos na existência. Em si mesmo, isto não é positivo, nem negativo. É. Na verdade, trata-se de uma espécie de duelo entre a fé (no seu sentido mais lato) e a razão, onde, no último instante, prevalece a última.
O movimento da fé assemelha-se, na entrega a Deus, ao movimento do amor, na entrega ao amado(a). Em ambas as situações, com as inevitáveis diferenças, domina o incognoscível e há um salto absurdo no desconhecido. O outro é, para nós, no seu sentido mais radical, um estranho. O movimento da fé, tal como o do amor incondicional, implica riscos e exige resignação. Quanto à razão, parece ser um empecilho, do qual não consigo desejar livrar-me. No último instante... é a representação de um salto no vazio, aquilo que inspira temor.

Em Temor e Tremor, Kierkegaard expõe a natureza do conflito e da dúvida que se instala na vivência da fé. É neste contexto que é relembrado o episódio bíblico de Abraão, o qual, para obedecer a Deus, deve sacrificar o seu filho, Isaac. O que Kierkegaard pretende pensar e mostrar (ainda que a fé seja um paradoxo, e do domínio do inexplicável) é que Abraão sacrifica o seu filho porque só assim acredita poder recuperá-lo. Crê que só pela sua completa entrega, no momento de confronto com o absoluto, é possível transcender a sua finitude e, paradoxalmente, possuir aquilo de que abdicou. Abraão resigna-se.
É esta resignação aquilo que constitui o movimento da fé - um salto no desconhecido pela entrega absoluta. Um amor incondicional, inscrito no âmago da vida, colado à sua vivência imediata. Ou se vive assim, ou não se vive. A reflexão não pode ter aqui lugar, porque a fé está para lá da razão. E o amor, não?

Confira-se:
«É agora meu propósito extrair da sua história, sob forma problemática, a dialéctica que comporta para ver que inaudito paradoxo é a fé, paradoxo capaz de fazer de um crime um acto santo e agradável a Deus, paradoxo que devolve a Abraão o seu filho, paradoxo que não pode reduzir-se a nenhum raciocínio, porque a fé começa precisamente onde acaba a razão.»
in Sören Kierkegaard, Temor e Tremor


Imagem: Os Amantes, René Magritte

domingo, 25 de outubro de 2009

Dois prémios e um abraço

Tenho a agradecer a simpatia e a gentileza do Vermelho Côr de Alface - blogue do Miguel (T. Mike), assim como do Restolhando - blogue da Maria Josefa Paias, por este prémio que torna o Catharsis "just perfect". É uma honra imaginar que possa ser mesmo assim para os seus autores, sempre tão especialmente atentos ao mundo que nos rodeia. Ou ainda assim: "your blog is just perfect to learn something every day". Sinceramente, muito obrigada a ambos!



Atribuo agora o mesmo prémio aos seguintes blogues:










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Este simpático e acolhedor abraço foi-me oferecido pela Teresa do BlogCrónicasdaTeresa, um lugar que se caracteriza por uma atenta intervenção da sua autora, face a tantos dos problemas que acompanham o nosso mundo actual. Muito obrigada, Teresa! Um abraço assim (tão caloroso), apetece receber, retribuir e partilhar. Portanto, além de o retribuir, dou-o também a todos os que me acompanham por aqui...





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Este prémio (que convida à reflexão...) foi muito gentilmente atribuído pela C. do Marcas d'Água: trata-se de um espaço onde a excelente diversidade dos temas é acompanhada pelas estimulantes análises dos seus autores. O meu muito obrigada à querida C.!





[Como já tinha feito nomeações anteriormente...
partilho agora este selo com todos os seguidores do Catharsis.]



quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Anti-tertúlia

«Vendo a mulher que o fruto da árvore devia ser bom para comer, pois era de atraente aspecto, e precioso para esclarecer a inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu dele a seu marido, que estava junto dela, e ele também comeu.» - Genesis

José Saramago afirmou que escrever o seu último livro foi um acto de liberdade. Excelente! Toda a boa literatura deve sê-lo, pois nada deverá amarrar uma mão com desejo de escrever. Nem a nossa outra mão.

Por outro lado, fico com pena de não ter tempo para discutir verdades de fé e verdades de razão com o Nobel da Literatura português. Talvez fosse uma conversa interessante, mas não tenho tempo. Lamentavelmente, não tenho tempo. Nem eu, nem o Saramago, que tem mais que fazer...
Como é sabido, livros semi-proibidos têm grande poder de atracção. Já não pegava na Bíblia há imenso tempo (embora a conheça razoavelmente bem), mas hoje reli um bocadinho do Genesis (bem sei que foi a correr...). Espero que não me faça mal, até porque, em tempos, li o Evangelho Segundo Jesus Cristo deste escritor - todo!, e não notei qualquer efeito pernicioso. Do que não gosto mesmo nada, e noto que me faz muito mal, é da ideia de livros na fogueira. Felizmente, são coisas do passado... É por estas e por outras que até gosto de viver no século XXI. A liberdade é uma coisa muito bonita. É por isso que ora trabalho, ora leio. Quando tiver umas férias, prometo que leio o Caim.


Imagem: pesquisa do Google


segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Séraphine de Senlis



Gosto do cinema francês, mas lamento que seja tão pobremente distribuído nas nossas salas de cinema, dominadas pela indústria cinematográfica norte-americana. Nada tenho, à partida, contra os filmes desta proveniência, muitos deles excelentes. O que critico, porque me parece empobrecedor, é a falta de equilíbrio, ou melhor dizendo, a escassez de alternativas.
Pois bem, este é um filme algo desintoxicante a este nível. É também um filme muito belo, segundo várias perspectivas: estética, existencial, artística, e até holística, pela intensa fusão do ser humano com a natureza, a qual, de certo modo, enaltece.






Realizador: Martin Provost

No papel de Séraphine: Yolande Moreau


Imagem: pesquisa do Google

domingo, 18 de outubro de 2009

Vêm aí os U2

Bom... é só daqui a um ano, mas... parece uma boa perspectiva. O concerto será em Coimbra, a 2 de Outubro de 2010. Os bilhetes já estão à venda (quase ou mesmo já esgotados) e levaram os fans a sofrer tormentos terríveis para adquirir alguns.
Sorte minha: tenho um bilhete! Pessoalmente, nunca o compraria com um ano de antecedência. Mas, não sendo assim, provavelmente, nunca chegaria a vê-los alive.




quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Questões de pragmatismo

É excelente quando se vê obra feita, quando à volta tudo gira num esplêndido carrossel de conforto e alegria. Sem dúvida, o ideal é uma vida neste tipo de mundo, onde o sucesso é uma constante e o desenvolvimento uma realidade. Pese embora a constatação, que pode estragar o perfeito retrato, de que só alguns podem usufruir desse mundo (e restaria saber a troco de quê...).
Se quanto a este legítimo desejo (o de uma vida boa) não há que colocar objecções, o mesmo não acontece quando subsistem questões. Neste tipo de mundo, supostamente paradisíaco, elas são incómodas, já que se temem perturbações no melhor dos mundos possíveis. Portanto, dizem alguns, o melhor é não as colocar. No entanto, dirão outros, é urgente trazê-las para perto da vida.
Uma questão é: se tudo está bem, importa saber quais os meios para alcançar o paraíso? - está tudo bem, é o que basta? - será que é preciso mais para o progresso da humanidade? Sim, porque se trata de um mundo humano. E pouco desta condição é algo simples, directo e linear. Afinal, o que é o progresso?

Um caso:
«A história do papel de Suharto na Indonésia também levanta a questão delicada de saber se quem está de fora devia fazer alguma coisa contra a corrupção. Apesar da aparente corrupção do regime de Suharto, o país conseguiu uma notável taxa de crescimento económico de 6 por cento ao ano durante os trinta e dois anos do seu reinado, tornando o país um dos grandes casos de sucesso da história moderna (...). Embora o clã de Suharto se tenha apoderado de mais do que devia ser a sua parte, as taxas de pobreza caíram dramaticamente nos anos em que governou e os programas de educação pública, de saúde e de planeamento familiar foram bastante expandidos. Havia riqueza que chegasse para que um pouco se reflectisse no indonésio comum.
(...) em geral, os países corruptos não crescem depressa, mas a Indonésia de Suharto foi uma excepção.
(...) Para o melhor e o pior, o regime de Suharto era conhecido por manter o controlo sobre os subornos, removendo a incerteza que é parte natural de quase todos os negócios ilícitos. Nas palavras de um executivo estrangeiro com décadas de experiência de negócios em Jacarta, "havia um preço para tudo e toda a gente o conhecia e sabia o que obtinha pelo que pagava". Pelo contrário, o mesmo executivo lamentava que na Indonésia pós-Suharto de hoje, "em vez disso, exista o caos".
(...) Apesar de todos os seus defeitos, Suharto impôs uma disciplina draconiana e estabilidade a um país que antes conhecera o caos, e é difícil adivinhar o que poderia ter acontecido sem a sua liderança. Na década que decorreu desde que Suharto perdeu o poder, emergiu uma democracia vibrante, que ainda não conseguiu as taxas de crescimento económico do tempo da ditadura corrupta de Suharto.
No entanto, é provável que isto não deva mudar a nossa posição geral sobre a redução da corrupção. São poucos os países corruptos com o sucesso económico da Indonésia de Suharto. De qualquer forma, o êxito da Indonésia estraga um pouco o argumento a favor dos benefícios de acabar com a corrupção. Os decisores políticos e as instituições de ajuda ao desenvolvimento gostam de receitas de acção simples, mas infelizmente o mundo é complicado e ambíguo. (...)»
in Raymond Fisman, Edward Miguel, Gângsteres Económicos - Corrupção, Violência e a Pobreza das Nações *


[*leituras para escapar ao tédio das belas fotografias (a classificação é minha)]


Imagem DAQUI

domingo, 11 de outubro de 2009

Herta Müller - Nobel da Literatura 2009



«Dentro da caixa rangeu papel de seda branco. Sobre o papel branco estava uma lágrima de vidro. Tinha um orifício na ponta. No interior, na barriga, a lágrima tinha um sulco. Por baixo da lágrima estava um bilhete. Rudi tinha escrito: "A lágrima está vazia. Enche-a de água. O melhor é água da chuva."
Amalie não podia encher a lágrima. Era verão e havia seca na aldeia. E água do poço não era o mesmo que água da chuva.
Amalie pôs a lágrima à luz em frente à janela. Por fora estava estática. Mas por dentro, ao longo do sulco, estremecia.
Durante sete dias o céu esvaíu-se em ondas de calor. Windisch foi até ao fim da aldeia. No vale, olhou para o rio. O céu bebeu água. Voltou a chover.
No pátio a água escorria sobre as pedras da calçada. Amalie postou-se com a lágrima debaixo da goteira. Via a água correr para a barriga da lágrima.
Na água da chuva também havia vento. Fez brotar campânulas de vidro entre as árvores. As campânulas estavam baças, as folhas agitavam-se dentro delas. A chuva cantava. Também havia areia na voz da chuva. E também havia lascas de casca das árvores.
A lágrima ficou cheia. Amalie levou-a para o quarto com as mãos molhadas e os pés nus cheios de areia. (...)
Amalie lambeu o pulso. "A água da chuva é doce", disse ela. "O sal é o pranto da lágrima."»

[O título do livro refere-se ao provérbio romeno «O homem é um grande faisão sobre a terra», o qual pretende estabelecer a associação entre o voo desajeitado do faisão e os defeitos e a acção desastrosa do homem sobre o mundo que o rodeia. (Nota da tradutora) - Edições Cotovia.]


- Este foi o único livro que pude obter, até agora, de uma escritora que conheço mal, mas a leitura já feita promete-me uma escrita muito poética, mesmo musical, com a constante presença da natureza. A par de uma radicalidade quase cruel na apresentação dos factos. Na verdade, quantas vezes eles contêm tal crueldade? Vezes demais, certamente.









Mais sobre Herta Müller AQUI


Imagem: pesquisa do Google

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Desabafos existenciais portugueses

Tenho acompanhado atentamente os acontecimentos de alto nível que se dão neste país que é o meu. Um país que amo com todos os seus defeitos e limitações. Um país que sinto ser um lugar do mundo muito especial, com gente fraterna e hospitaleira, calorosa como o nosso sol quase -permanente. E continuo a acreditar no crescimento civilizacional das gentes portuguesas. Porque sou uma optimista. Mas, um(a) optimista informado(a) pode tornar-se pessimista. Pois bem, a solução será a desinformação?! O que sempre reneguei?! Como manter-me informada sem ficar contaminada pela falta de elevação dos acontecimentos pseudo-importantes deste país?!
Falta de elevação consiste, na minha modesta óptica de observadora interessada nos rumos do meu país; dizia eu, a elevação é algo, ou um caminho, que nos possa conduzir à resolução de problemas reais, concretos e inadiáveis. Pois, mas quando procuro ouvir (ou ler) os ilustres da nossa praça, há tudo menos essa orientação. É como se toda uma teia-imbróglio nos aprisionasse num nível comezinho de análise deste nosso viver conjunto. Claro que os seres humanos são seres cheios de desejos, plenos de vontade de poder, contraditórios e contaminados pelo erro. Mas, este tipo de condução de um país, estratégica ou espontaneamente atrofiado, dá vontade de fugir. O ar está saturado. As altas esferas apresentam sintomas preocupantes. Provavelmente, as baixas esferas mergulham de modo ainda mais profundo na apatia e no desencanto.
Portanto, depois de ter obtido informação de todos os quadrantes, vou tentar descansar de tantos conteúdos desinteressantes. Desligo a televisão, ignoro jornais. Tenho a firme crença de que não serão as questiúnculas e os ambientes de suspeição a levar o país a reduzir o déficit e a criar empregos. Muito menos estas histórias intermináveis, do foro político, jurídico e institucional, que nos são reveladas, sem nunca apresentarem solução.
Como é possível... num território tão virado ao mar, e com uma imensa e disponível largueza de horizontes, uma tal permanente auto-flagelação do conceito de "ser português" - assim?! Portugal, infelizmente, parece aquele pianista sem inspiração que só sabe bater na mesma tecla.
Olho à minha volta... e é só quando vejo tantos a lutar e a trabalhar, que ainda acredito sermos capazes de composições tão excelentes quanto originais.

Interrogo-me: muito mais seria de dizer?
Foi Wittgenstein que o afirmou, e consola-me relembrá-lo: "Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio."

Regresso ao futuro

Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...