domingo, 30 de outubro de 2011

"Lembre-me o nome do compositor"

Andava eu à procura de interpretações do fantástico Concerto para Piano de Ravel, quando veio à minha memória o que tinha lido recentemente sobre o fim da sua vida. Refiro-me ao comentário bastante duro que Julian Barnes faz acerca da morte de personagens que consideramos extraordinárias. Uma série de coisas algo assustadoras, e nem por isso menos interessantes. 
Como gosto de ficar a matutar em paradoxos (às vezes), reparo neste: como é que alguém capaz de ímpetos criadores tão absolutamente sublimes, como foi o caso de Ravel, chega a perder a consciência da sua própria obra?!

Ouvindo versões... para diferentes (ou para os mesmos) gostos:





Mas, por entre tudo isto, escreve Julian Barnes: «Ravel morreu aos poucos - levou cinco anos - e isso foi de facto o pior. No início, o declínio por causa da doença de Pick (uma forma de atrofia cerebral), embora alarmante, era atípico. As palavras fugiam-lhe; a capacidade motora descontrolava-se. (...) Mas depois a doença tornou-se específica e maligna e atacou o Ravel compositor. Foi a uma gravação do seu Quarteto de Cordas, sentou-se na sala de controlo, fez várias correcções e sugestões. Depois de cada andamento estar gravado, perguntavam-lhe se queria voltar a ouvi-lo, mas ele recusava. Assim a sessão avançou depressa, e no estúdio ficaram satisfeitos por tudo ficar feito numa tarde. No final, Ravel voltou-se para o produtor (e o facto de adivinharmos o que disse não consegue atenuar o impacto): "Foi realmente muito bom. Lembre-me o nome do compositor."  (Julian Barnes, Nada a Temer)

Mesmo situando-nos na ordem do inevitável, algo em mim nega-se a aceitar que é assim mesmo e que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Sinceramente, há desfechos que não deviam ser permitidos. Resta o que talvez não seja pouco: lembrar o nome do compositor: Ravel .

sábado, 22 de outubro de 2011

Tão forte como o destino

"O que há em mim é sobretudo cansaço", disse-nos Álvaro de Campos. E a ele regressamos, inevitavelmente. A esse dizer poético que nos transporta mais além, até à região na qual o indizível nos mostra a sua sombra e nos permite uma vaga aproximação. Mas este cansaço meu possui também outros contornos. Há algumas palavras que podem dizê-lo. Na verdade, há sobretudo factos que podem revelá-lo. Vejamos. O cansaço físico que resulta das exigências do trabalho. O cansaço físico, o do corpo que acompanha a percepção de que, hoje, o que de nós se exige nunca é suficiente. Mas é preciso acentuar o que de realmente denso há nessa percepção: o que se exige nunca virá a ser suficiente. Listando: ...e o cansaço da vista de tanto ver, e o cansaço de tanto ouvir; o cansaço das expressões dominantes: déficit, dívida soberana ou orçamento; o cansaço de esperar pelas decisões do Conselho Europeu, ou o cansaço de aguardar pelos "cozinhados" entre os parceiros sociais;  cansaço de saber que há tanta gente entendida, mas que o seu entendimento das coisas se encontra submetido a estratégias de acção com interesses bem definidos, o que rapidamente constatamos sob um olhar mais atento; cansaço do blá blá blá que nos entretém e até marca como diversão o compasso de espera em que sempre nos encontramos... e o quase esgotamento de prever reacções, precisamente porque elas são previsíveis, tal e qual como as minhas... Enfim, acho que fico por aqui em matéria de queixumes arrumados no fim-de-semana.
Restam-me ainda forças para lembrar que quem se queixa é tido como fraco. Como bem sabemos (será?) dos fracos não reza a história. Mas, vasculhando com algum rigor esta questão da força e da fraqueza... a que força nos referimos então? À força do carácter, à força que se alia à grandeza de objectivos, ou tão somente à força da dominação sem escrúpulos, à que tem como único horizonte o poder imediato? Os ditadores também sucumbem e, quase sempre, fazem-no miseravelmente. Assumir fraquezas é sinal de força, digo-o com cansaço. Mas cansa certamente muito mais fingir que nada se passa, já que estamos todos no melhor dos mundos possíveis. É só um caso desagradável, esse de que existe fome no mundo. Pode ser eficazmente eliminado, para não estragar a pintura perfeita do belo quadro - o que representa de forma brilhante a nossa existência imbuída das suas idealizadas circunstâncias: desde sempre existiu fome no mundo; há pessoas cuja sorte é mesmo essa: uma vida esfomeada. Há, portanto, um destino, tudo está bem encadeado neste universo de causas e efeitos. Ridícula essa vã esperança humana de que podemos mudar alguma coisa pela nossa vontade, uma que ouse, supostamente, contrariar o curso dos acontecimentos! Mas acontece ser essa quimera igualmente uma causa que terá os seus efeitos... Ou não? Verdade é que, situando-nos neste prisma, a cadeia de acontecimentos é praticamente infindável...
Assim sendo, não sei porque escrevi tudo isto. Bastava ter dito: "estou cansada porque o ser humano cumpre o seu destino desumano". Melhor ainda, bastava dizer: "quero lá saber! a vida é bela!" - e é. Por isso, devo dizer também, com Ricardo Reis: "Flores que colho, ou deixo/Vosso destino é o mesmo".


quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Quem conta um conto, acrescenta um ponto

Surrounded de Maggie Taylor


Histórias para "acordar"

Pequena Fábula

«"Ai de mim", disse o rato. "O mundo está a ficar cada dia mais pequeno. Ao princípio era tão grande que eu tinha medo, estava sempre a correr, a correr, e fiquei contente quando finalmente vi paredes lá ao longe, à esquerda e à direita, mas estas longas paredes estreitaram-se tão depressa que eu agora estou já no último compartimento e ali no canto está a ratoeira para a qual sou obrigado a correr." "Só precisas de mudar de direcção", disse o gato, que logo o engoliu.»
in Franz Kafka, Contos


sábado, 15 de outubro de 2011

Diz que é uma espécie de estado de excepção


Leituras para tempos difíceis:

«O estado de excepção alcançou mesmo, hoje, a sua máxima extensão planetária. O aspecto normativo do direito pode assim ser impunemente obliterado e contraditado por uma violência governamental que, ignorando, no estrangeiro, o direito internacional, e produzindo, no interior, um estado de excepção permanente, pretende todavia estar ainda a aplicar o direito.
Não se trata, naturalmente, de repôr o estado de excepção dentro dos seus limites temporal e espacialmente definidos, para reafirmar o primado de uma norma e de direitos que, em última instância, têm nele o seu próprio fundamento. Do estado de excepção efectivo em que vivemos não é possível o regresso ao Estado de direito, visto que estão agora em questão os próprios conceitos de "estado" e de "direito". Mas se é possível tentar deter a máquina, expôr a sua ficção central, é porque entre violência e direito, entre a vida e a norma não há qualquer articulação substancial. Ao lado do movimento que procura a todo o custo mantê-los ligados, há um contramovimento que, operando em sentido inverso no direito e na vida, procura sempre separar aquilo que foi artificial e violentamente ligado. Isto é, no campo de tensão da nossa cultura agem duas forças opostas: uma que institui e põe e outra que desactiva e depõe. O estado de excepção é o seu ponto de máxima tensão e, ao mesmo tempo, aquilo que, coincidindo com a regra, ameaça hoje torná-los indestrinçáveis. Viver no estado de excepção significa fazer a experiência de ambas estas possibilidades e, no entanto, separando sempre as duas forças, tentar incessantemente interromper o funcionamento da máquina que está a conduzir o Ocidente para a guerra mundial.»
in Giorgio Agamben, Estado de Excepção

É caso para pensar. E é caso para permanecermos atentos, expectantes e combatentes face ao futuro do mundo e do país. Por todo o lado, observamos uma separação radical e continuada entre vida e direito. Não queremos uma vida nua, queremos uma vida humana.

 

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

domingo, 9 de outubro de 2011

As Serviçais

 


"As Serviçais", ou "The Help" (2011) no original, realizado por Tate Taylor, mostra-nos o ambiente vivido nos anos 60, numa típica cidadezinha do sul dos Estados Unidos, na qual a educação para a hipocrisia faz os seus estragos numa certa geração de jovens esposas. Claro que os estragos não ficam por aí. Estas jovens, completamente desconectadas com a realidade mais dura e cruel, ainda que próxima, criam elas próprias uma realidade ainda mais desumana, sob uma capa de perfeição tão plastificada quanto fútil e inútil. Mas o cerne desta história (ou histórias) é outro. As famílias modelo aqui personificadas só subsistem enquanto tal, na medida em que existe um determinado e excelente pessoal (the help) nas traseiras das casas. A preciosa ajuda é dada, portanto, por estas mulheres fortes, mas destituídas da sua dignidade e humilhadas perante as suas mais elementares necessidades. É com as suas histórias que este filme bem feito se desenvolve. Histórias tristes, mas também divertidas, que nos levam a repensar a questão dos direitos civis e das diferenças raciais. Tudo do ponto de vista de um universo feminino. Quer do lado opressor, quer do oprimido, é também a emancipação da mulher o que está em causa. Vale a pena ver, até porque tem um variado e competente conjunto de interpretações, das quais destaco a de Viola Davis.




"The Help" resulta da adaptação do romance de Kathryn Stockett, "The Help" (2009).


Daddy...

Momento musical (lento e moderado...) 




He's a dog
But he's dressed up like a sheep
Got bones all through the backyard
But he likes to drink tea
We play scrabble on the weekend
And he talks about the weather most of the time
I thought my sacred body
With him it would be fine
And I walked into the doorway
He slid across the room
My heart, it started racing
I just didn't know what to do
And he laid me on the floor
And my screams they go unheard
The lady living next door
Well she's six feet under the dit
  
Daddy, why don't you protect me
Someone's gonna hurt me
There's nothing I can do
Daddy, why don't you protect me
Someone's gonna hurt me
There's nothing I can do
He's a dog
But he's dressed up like a sheep
He's got bones all through the backyard
But he likes to fool me
And I travel through the doorway
I thought I'd be fine
But it's not the way it's gonna go this time

Daddy, why don't you protect me
Someone's gonna hurt me
There's nothing I can do
Daddy, why don't you protect me
Somebody is going to hurt me
There's nothing I can do
And all this time I needed you
And all this time I wanted you
You can't hear me now
Can't hear me now
Like you do

Daddy, why don't you protect me
Someone's gonna hurt me
There's nothing I can do
Daddy, why don't you protect me
Somebody is going to hurt me
There's nothing I, I can do

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Sociedade Lunar

Encontro da Sociedade Lunar de Birmingham (século XVIII) - autor anónimo

Sem dúvida, considero muito interessante esta sociedade - Lunar Society - cujo nobre objectivo consistiu em contribuir para o desenvolvimento económico e técnico do Ocidente no século XVIII, realizando, entre outras actividades, reuniões periódicas para discutir e debater as últimas novidades da época. E porquê Sociedade Lunar? Acontece que os seus membros aproveitavam as noites de lua cheia para se deslocarem até ao ponto de encontro - na gravura, ele é a casa de James Watt (1736-1819). Era perigoso viajar à noite naquele tempo, indo a cavalo, sobretudo porque as estradas não possuíam qualquer iluminação. Mas o luar oferecia uma excelente protecção. Pelo mesmo motivo, os seus membros passaram a ser designados por os lunáticos. Aqui está a origem de se considerarem os cientistas, filósofos, e pensadores em geral, como tal.
Considerando o preço actual da energia eléctrica, não sei se não será uma sugestão a ter em conta agora, em pleno século XXI. Aproveitar as noites de lua cheia para realizar uma série de tarefas ao luar, por exemplo, algumas daquelas que já não possam realizar-se com a luz do dia: conversar, debater ideias, descobrir soluções para problemas (tantos!) ... Bom, mas isso já não se faz muito nos tempos que correm. Agora é mais cortar a eito e já está. De qualquer forma, fica a sugestão, e também a interrogação: que poderemos fazer para aproveitar a luz do luar?


Regresso ao futuro

Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...