segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Isto não é crítica de cinema, é cinema de crítica

O novo filme de Sofia Coppola pode não prender de imediato, já que temos a sensação de que nele nada acontece (sobretudo no início), mas essa é uma das suas melhores qualidades. De facto, se nos encontramos no deserto e no mais sufocante vazio (tema recorrente da realizadora), é esse mesmo estado de aniquilamento da real existência que deveremos começar por sentir. Até ao ponto mais alto... que finalmente suscita alguma reacção.


Mas, por outro lado, além da música dos Phoenix, há tudo isto no filme: uma fotografia excelente, uma cidade (Los Angeles) de sol brilhante, vias rápidas e longas auto-estradas percorridas sem descanso, personagens silenciosas, tédios, e ainda a ternura residual de uma vida vazia e sem sentido, à semelhança da Las Vegas por onde passamos durante alguns minutos. Há um realismo e um minimalismo muito especiais neste olhar, suave e incisivo ao mesmo tempo. Há uma América de plástico, sem gosto pela vida, nascida do excesso e da glória fácil e decadente. E, apesar de tudo, há também essa ternura que brota da relação entre um pai e uma filha (com um certo pendor auto-biográfico nesta atmosfera), dando lugar a algumas das mais belas imagens/cenas do filme. À superfície, nada parece acontecer. É interiormente que toda a mudança se dá e pode ter significado. Não nos é dado observá-la, apenas pressenti-la...
E há também Elle Fanning, esta miúda adorável, de rosto magnífico e expressão cativante.


Lost in translation fez de Sofia Coppola uma das minhas realizadoras preferidas. Somewhere faz dela uma realizadora a respeitar. À margem do glamour sem sentido, do excesso de efeitos especiais, das emoções fáceis, e de tanto mais sem interesse, eis a coragem de um olhar crítico perante a realidade: o vazio da sociedade do espectáculo, a ausência de valores familiares, o exibicionismo de um Ferrari cujo consumo é obsceno... tudo isso nos é dado a pensar. 
Um bom filme pode ser um filme simples e que deixa em aberto diversas leituras possíveis. Pode ser um filme que no final não oferece soluções, mas nos incita a procurá-las e a inventá-las. Que dizer de um final como este? Que não importa onde, algo vai ter que mudar. O vazio é insustentável. O futuro pode ser construído em qualquer lugar, mas, seja qual for esse algures, depende de cada um de nós torná-lo mais humano, autêntico e sustentável para os nossos filhos. Acontece ser esta a minha leitura.


[de assinalar que Somewhere ganhou o Leão de Ouro do Festival de Veneza]


sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

implicitamente


o sol põe-se. não é por acaso
ou não poderia eu ver aquela implícita nesga de céu azul que tanto me trespassa 
ao ver-te recortado na minha imaginação
 e quanto mais acordo mais te vejo
tão único tão sol na cadência dos dias 



Fotografia de A.P: Santarém (Agosto 2009)

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Nader e Dara

Podia muita coisa resolver-se assim? 


Abbas Kiarostami leva-nos a crer (genial e simplesmente) que sim.

[e eu acredito - apesar de ser muito ciosa/cuidadosa com os meus livros, prefiro a segunda solução]

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Há estrelas do mar amorosas

Pintura de Anita Klein
«- Numa dádiva vital - redargui -, para não dizer numa dádiva divina, como é a Música, não nos cumpre descobrir sardonicamente antinomias que apenas demonstrarão a plenitude da sua essência. Cumpre amá-la.
- Consideras o amor a mais forte de todas as paixões? - perguntou ele.
- Conheces outra mais forte?
- Sim, o interesse.
- Imagino que esse termo significa para ti um amor privado de qualquer calor animal.
- Proponho que aceitemos essa definição - respondeu, rindo. - Boa noite!» 
in Thomas Mann, Doutor Fausto (diálogo entre Adrian Leverkühn e o seu amigo Serenus Zeitblom)
 

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Que falta de graça na pseudo-futurologia

Fotografia de Gregory Crewdson

Eu nunca gostei de saber o futuro. Prefiro imaginá-lo. Quando se oferecem (ou querem cobrar) para me "ler a mão"... recuso. Não é só algum mau feitio, ou uma qualquer possível, mesmo que terrível, falta de fé. É mesmo uma certa e forte vontade de achar graça à vida. Em contrapartida, gosto  bastante de previsões. Em princípio, protegem-nos, não deixando de ser humanas, precisamente  porque comportam alguma margem de erro. Agora, futurologia... acho um aborrecimento (para não dizer pior). Sobretudo se é fundada em crenças, mais do que em análises rigorosas. Mas, os extraordinários futurologistas do nosso país sabem tudo acerca do que vai acontecer: daqui a um mês, daqui a dois meses, daqui a... um ano, e assim por diante. E eu já não sei se é porque eles o afirmam tão convictamente, que vai ser mesmo assim; ou se é porque vai ser mesmo assim, que eles o afirmam tão convictamente. Enfim, com um destino tão traçado, e negativamente (ouçam-se/leiam-se as notícias e as tão sábias exposições constantemente disponibilizadas), como consegue sobreviver a esperança e a vontade de construir um mundo que ainda possa ser melhor?
 
Outros horizontes

«Os modos que temos de ignorar alguma coisa são tão ou mais importantes talvez do que os modos que temos de a conhecer. (...) É possível até que seja precisamente o modo como conseguimos ignorar que define o estatuto do que conseguimos conhecer e a articulação de uma zona de não conhecimento seja a condição - e, ao mesmo tempo, a pedra de toque - de todo o nosso saber. (...) Articular uma zona de não conhecimento não significa, com efeito, simplesmente não saber: não se trata aqui somente de uma falta ou de um defeito. Significa, pelo contrário, mantermo-nos na relação justa com uma ignorância, deixar que um desconhecimento guie e acompanhe os nossos gestos, que um mutismo responda limpidamente pelas nossas palavras. Ou, para usarmos um vocabulário caído em desuso, que aquilo que nos é mais íntimo e melhor alimenta tenha a forma não da ciência e do dogma, mas da graça e do testemunho. A arte de viver é, neste sentido, a capacidade de nos mantermos numa relação harmoniosa com aquilo que nos escapa
Giorgio Agamben, "O Último Capítulo da História do Mundo" in Nudez

[os sublinhados são meus]


sábado, 12 de fevereiro de 2011

Política sofisticada

Quando olhamos para a política portuguesa, há que reconhecer o elevado nível de sofisticação que alcançou. Isto já não é para qualquer um. A complexidade processual assemelha-se à do sistema judicial. Deve ser por isso que o lugar certo para estar é algures num poiso completamente desligado da realidade e do busílis das questões. Há meandros e labirintos a percorrer, sempre houve. E, agora, entretidos com tais tortuosos caminhos, as metas não importam nada. A verdade é que tudo se joga na estratégia e, suspensos nela, o tempo passa e a gente diverte-se. Eu até andava um bocado entediada... Mas, agora: agora não. Depois de confundida, uma pessoa sente-se de novo viva. Só para rir!

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Passeante hipermoderna


Certamente por causa de leituras, dei por mim a pensar inquietantemente em moda, imagine-se... É verdade que gosto de acompanhar as tendências e a criatividade dos/das estilistas que às vezes nos apresentam verdadeiras obras de arte. Sou, muito provavelmente, uma passeante hipermoderna. Isto, de acordo com o conceito de Gilles Lipovetsky. Quer dizer, ando por aí qual flâneur, contemplo, interpreto e sigo este fenómeno-moda. Sou, afinal, filha do meu tempo. Não pós-moderna, mas sim hipermoderna, diria Lipovetsky. O pós-modernismo foi apenas um ponto de ruptura transitório, depois é que veio um novo tempo, e é este, o da hipermodernidade em que estamos instalados.
No entanto, quando o filósofo se refere ao luxo, sinto-me quase ofensiva, quando dou conta do meu gosto por estas coisas supérfluas (?). Por exemplo, sinto-me atraída por este modelo de Yuima Nakazato. Difícil de obter, verdade? Até porque ainda nem sequer está a ser comercializado. Mas não causará danos maiores desejá-lo e imaginar possuí-lo, suponho... Sobretudo quando leio estas palavras:

«Por um lado, o luxo tem, inegavelmente, qualquer coisa de chocante. Mas, por outro lado, quem desejaria verdadeiramente uma sociedade unicamente funcional, sem sonho nem desperdício, sem mitologias prestigiosas, sem formas superlativas? Não será legítimo desejar coisas mais belas? Embora se diga que o luxo é "mau", onde é que será necessário colocar a fasquia? A velha questão: onde começa o supérfluo? Quando começa o inaceitável? E o que é uma "verdadeira" necessidade? Será a arte uma forma de luxo? Se o é, o que fazer? Entra-se, aqui, num tipo de reflexão em que os argumentos não conseguem convencer, em que mais racionalizam reacções emocionais do que exprimem um verdadeiro empenho do saber.»
Marcos de um Itinerário Intelectual - Entrevista com Gilles Lipovetsky conduzida por Sébastian Charles  in Gilles Lipovetsky e Sébastian Charles, Os Tempos Hipermodernos

Inquietantes questões. Mas não interessam verdadeiramente a Lipovetsky, segundo diz, já que, segundo pensa, não é possível dar-lhes respostas transparentes e fundamentadas. Resta então, penso eu, a esperança de que esta espécie de luxo possa tornar-se um luxo democrático e, portanto, acessível, se não a todos, pelo menos à esmagadora maioria. Deve ser por aí... algures no cerne desse pensamento, que já não estou meramente a "passear".



Imagem: Yuima Nakazato

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Leio-te, mundo, escrevo-te? mundo

"O infinito, meu caro, é bem pouca coisa; é uma questão de escrita. O universo só existe no papel." 
Paul Valéry, Monsieur Teste

Sim, o tempo foge, mas eu não fugi com ele, embora também vá passando... Ultimamente, tenho andado absorvida com a sensação de que a vida é uma Grande Leitura - o que me suscita uma crise do tipo síndrome de Bartleby, tanto mais aguda, quanto mais há para ler: aquele livro, aquela opinião, aquele comentário, aquele jornal... mas, também  e cativantes, aquele rosto, aquela expressão, aquele movimento dos astros, esse constante ondear do mar, aquele riso e aquelas lágrimas... na verdade um imenso infinito de escritas, em papel ou não (até porque o papel hoje é outro), e que está aí para ser lido. Tudo se escreve, porque tudo se escreverá, mas nem tudo se lê, e não sei se tudo virá a ser lido. Por mim, não, pelo menos. Mas esta predisposição para ler, decifrar e interpretar tem como correlato incontornável uma espécie de recolhimento e de silêncio que procura escrever, sem conseguir, essa crescente densidade do universo que criamos. O universo é uma imensa e contínua criação, um feito de infinitas galáxias e constelações, onde cada um procura orientar-se (quando quer) a partir de uma grande leitura. Acontece termos que deixar de ler, para escrever. E, depois, ler... Uma vezes planeta, outras satélite.

Regresso ao futuro

Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...