domingo, 30 de novembro de 2008

Da cegueira ou "ser humano não é fácil"


Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Livro dos Conselhos



Gostei do filme de Fernando Meirelles, embora a luz branca e azul, metálica, invadisse toda a atmosfera, ofuscando-a. O que gerou o intenso contraste com os raros momentos de humanidade, quando os tons quentes conseguiam penetrar nos contornos das imagens.
Mas nada nestes instantes humanos cede ao facilitismo. Nada fica sem alerta para a beleza ou para a bondade fáceis. Nada fica escondido do olhar do próprio que procura "ver". "Ver-se". Após cada momento de depuração, o que resta de humanidade é pouco, surpreendentemente pouco. Embora inabalável.
Ser humano acontece ser difícil. Somos um processo ainda e sempre em (re)construção...

Um filme duro a partir de um livro obstinadamente duro. Um desafio da consciência para a consciência ( humana?).

Após ver o filme, releia-se o livro. Por exemplo:

«Quando eles se afastaram para irem cobrar o salário da vergonha, como o primeiro cego protestara com retórica indignação, a mulher do médico disse às outras mulheres, Fiquem aqui, eu já volto. Sabia o que queria, não sabia se o encontraria. Queria um balde ou alguma coisa que lhe fizesse as vezes, queria enchê-lo de água, ainda que fétida, ainda que apodrecida, queria lavar a cega das insónias, limpá-la do sangue próprio e do ranho alheio, entregá-la purificada à terra, se ainda tem sentido falar de purezas de corpo neste manicómio em que vivemos, que às da alma, já se sabe, não há quem lhes possa chegar.»

«O senhor é escritor, tem, como disse há pouco, obrigação de conhecer as palavras, portanto sabe que os adjectivos não nos servem de nada, se uma pessoa mata outra, por exemplo, seria melhor enunciá-lo assim, simplesmente, e confiar que o horror do acto, só por si, fosse tão chocante que nos dispensasse de dizer que foi horrível, Quer dizer que temos palavras a mais, Quero dizer que temos sentimentos a menos, Ou temo-los, mas deixámos de usar as palavras que os expressam, E portanto perdemo-los, (...)»

«Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.»
in José Saramago, Ensaio sobre a cegueira

Espero ter visto o filme, olhando e reparando...


Imagem: pesquisa de imagens do filme no Google


quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Um livro: Al-Tayyeb Salih




«Quão belo e bem moldado é o teu volante, assente no aço
Até Sitt Nafour, esta noite, ninguém cede ao cansaço.»

"Caros senhores, peço-vos que não suponham que o Mustafá Saíd se tinha transformado numa obsessão que me acompanhava em todos os meus gestos. Por vezes, passavam meses sem que me ocorresse tão-pouco que ele tinha morrido afogado, ou que se tinha suicidado, só Alá o sabe. Milhares de pessoas morrem todos os dias. Se nos ocupássemos das razões da morte de cada um e do modo como morreram, o que nos aconteceria a nós, os vivos? A vida prossegue, quer queiramos quer não. Eu, tal como milhões de outros homens, prosseguia. Avançava, na maior parte dos casos, mercê do hábito, numa longa caravana de camelos que subia e descia, que se detinha e, de novo, partia. E a vida, nesta caravana, não era inteiramente má. Vós sabê-lo-eis, sem dúvida alguma. A viagem poderá ser árdua, durante o dia. Os desertos estendem-se, à nossa frente, como mares sem costa. O suor cobre-nos o rosto. As gargantas secam-se de sede. Atingimos o limite para lá do qual julgamos não ser possível avançar mais. E, então, o Sol põe-se e o ar arrefece. Milhões de estrelas fulguram no céu. Nesse momento, comemos e bebemos, e o cantor da caravana começa a cantar. Alguns de nós rezam, atrás do shaykh. Outros formam círculos, dançam, cantam e batem palmas. Sobre nós há um céu quente e aprazível. E, por vezes, viajamos durante a noite, durante tanto tempo quanto nos agradar. E quando a linha branca se separa da linha negra, dizemos: «Quando a manhã nasce, os homens congratulam-se por terem caminhado de noite.» Ainda que, por vezes, as miragens nos ludibriem e pensamentos destituídos de verdade e clareza atravessem a mente febril, pelo efeito do calor e da sede - os espectros da noite dissipam-se com a aurora e a febre do dia arrefece com a aragem da noite. Haverá outro modo de ser, diferente deste? Era assim que eu passava dois meses de todos os anos, nessa aldeia pequena, junto à curva do Nilo."

Um livro que nos traz o grande exotismo de uma região atravessada pelo rio Nilo: o Sudão. A magia dos lugares onde África se mistura com o mundo árabe. Contrastes culturais experimentados por um Mustafá e por um narrador, ambos tendo estudado em Inglaterra.
Mas este exótico e rico universo cultural é o de uma região dominada pelos mais graves problemas: instabilidade política, confrontos culturais e religiosos; e a vivência tenebrosa da Fome. Um lugar que é também o Darfur.

Na edição da Cavalo de Ferro pode ler-se:

"Considerado o romance árabe mais importante do século XX, «Época de Migração para norte» é uma obra polémica e ainda proibida em diversos países do Médio Oriente e de África."

"Esta obra faz parte da Série de Obras Representativas da Humanidade escolhidas pela UNESCO."

Imagens: pesquisa do Google (clicar no mapa para aumentar)




segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Paul Auster



Gosto muito dos livros de Paul Auster. Já há muito tempo que gosto. Há um primeiro Paul Auster com livros inesquecíveis, para mim. Há também um segundo, com uma escrita bem mais amadurecida e que assinala a evolução de uma literatura sempre renovada e transformada. Com as marcas inconfundíveis, e cada vez mais enraízadas, do seu universo. No qual apetece "mergulhar" recorrentemente.

Para quem gosta do autor, está aí a tradução portuguesa do seu último livro:
"Homem na Escuridão".

Paul Auster está em Portugal: acompanhar aqui

Em jeito de homenagem, um excerto de "Cidade de Vidro" - sem dúvida, um dos meus predilectos:

«O que apreciava nesses livros era a sua sensação de plenitude e economia. Numa boa história de mistério nada é desperdiçado, todas as frases ou palavras são significativas. E mesmo que não sejam significativas, têm a potencialidade de o serem - o que vai dar ao mesmo. O mundo do livro ganha vida, fervilha de possibilidades, segredos e contradições. Dado que tudo é visto ou dito, mesmo a coisa mais ínfima ou mais trivial pode ter uma ligação com o desfecho da história, e por conseguinte nada deve ser descurado. Tudo se transforma em essência; o centro do livro altera-se com cada acontecimento que o impele para a frente. O centro está portanto em todo o lado, e só se pode desenhar uma circunferência quando o livro chegar ao fim.

O detective é aquele que olha, que escuta, que se move através de um pântano de objectos e acontecimentos em busca do pensamento, da ideia que associará estas coisas e lhes conferirá um significado. Com efeito, o escritor e o detective são intermutáveis. O leitor vê o mundo através dos olhos do detective, experiencia a proliferação dos seus pormenores como se fosse pela primeira vez. Torna-se consciente das coisas que o rodeiam, como se elas pudessem falar-lhe, como se, devido à atenção que agora lhes dedica, elas pudessem começar a veicular um outro significado que não o simples facto da sua existência. Private eye. Detective privado - olho privado. Este termo tinha um significado triplo para Quinn. (...)»
in Paul Auster, A Trilogia de Nova Iorque

Imagem: pesquisa do Google


quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Anti-formigas


Hoje, deu-se um acidente à minha porta. Na estrada, atravessando fora da passadeira, uma mulher ainda jovem foi parcialmente colhida por um carro. O condutor apitou no momento em que lhe batia. E seguiu a sua viagem, dominado pela velocidade vertiginosa que imprimiu à viatura. Não parou, não ofereceu ajuda, seguiu... como se tivesse pisado uma formiga.

O acontecimento, que por mera coincidência pude presenciar, foi muito rápido! Ninguém, eu incluída, fixou a matrícula do automóvel. Os olhares convergiram de imediato na mulher ali caída. Desde logo, chorava e queixava-se de muitas dores. Tive oportunidade de testar a minha humanidade. Cheia de pressa e afazeres, parei e fiquei por ali, dando algum apoio com palavras calmas e (talvez) um pouco reconfortantes. Telefonei a pedir ajuda. Claro que não fiz nada de especial. Era o mínimo. Outras pessoas também ficaram para ajudar e apoiar. No entanto, a ajuda era escassa. Não podíamos fazer rewind neste pequeno filme, e fazer com que aquela mulher pudesse continuar a sua luta diária. Ia a correr para o local de trabalho... Não podíamos viver a sua dor e toda a sua vida transtornada, no lugar dela. Nem quereríamos tal. Não seríamos certamente capazes de tanto.

Fiquei a pensar... e todo o resto do dia ficou a sensação estranha e revoltante de podermos ser apenas umas formigas uns para os outros. Vezes demais!
Eu gostaria de ter perguntado ao condutor daquele carro: «Diga-me... afinal, somos humanos ou somos formigas?!».
Acho que ele ficaria a rir-se de mim. Porque na ordem cósmica do universo, é certamente muito menos do que uma formiga!! Elas não páram, seguindo o seu programa genético pré-definido e fechado. Aquela pessoa, conscientemente, com capacidade de escolha e de decisão, optou por ficar abaixo do comportamento de uma formiga. Porque viu num(a) outro(a) aquilo que de facto é ele que é.

E as formigas até são bem interessantes! Ao contrário de certos seres "humanos".



Este pequeno vídeo é um excerto do filme "Waking Life" de Richard Linklater


Imagem: Moebius Strip II-Ants de M.C. Escher


quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Momentos filosóficos - 1


Em tempos onde a sociedade da informação nos presenteia diariamente com sinais negativos, nada melhor, para radicalizar efectivamente o estado do mundo, do que uma reflexão com Schopenhauer (1788-1860, Alemanha).
A propósito do filósofo, há que abordar, no mínimo, e ainda que superficialmente, o seu célebre pessimismo. Sendo que, na sua perspectiva, tudo está ligado ao papel da vontade. Pessimismo e vontade, portanto.
Vontade de quê? - poderemos começar por perguntar. Vontade de viver. Tão simples quanto isso. Dirá Nietzsche (mais tarde) : vontade de poder. Estamos assim numa linha onde se afirma o irracionalismo dos acontecimentos do mundo, do próprio ser humano e da sua vida. Abandona-se a pretensão de que será possível explicar racionalmente o decurso dos acontecimentos, na medida em que eles possuam intrínsecamente tal racionalidade. A nobre tarefa, de acordo com muitos, consistiria em desvelar esse carácter racional da vida e do mundo. Mas, para Schopenhauer, isso seria um objectivo completamente desajustado: o Mundo é apenas Vontade (e Representação - ao que não me refiro directamente aqui e agora).

O pessimismo de Schopenhauer reside na afirmação de que, aconteça o que acontecer, faça-se o que se fizer, seremos sempre dominados pela vontade. Ou seja, pelas nossas visões e desejos "interessados" e pessoais. Individuais. Egoístas. Pela vontade não é possível ir mais além, ultrapassar o domínio dos seus próprios limites, alcançar um outro patamar de realização da humanidade. Também não defendeu a existência de Deus para possível consolo. Mostrou o ser humano abandonado a si mesmo numa antecipação da filosofia existencialista.
Mas existe alguma forma de escapar desta limitadora e fatal vontade, elevando-a? Sim, há vias de libertação. Pelas artes e, em especial entre elas, pela música, cópia da própria vontade.

«Todas as aspirações da vontade, tudo o que a estimula, todas as suas manifestações possíveis, tudo o que agita o nosso coração, tudo o que a razão classifica sob o conceito amplo, e negativo de "sentimento" pode ser exprimido pelas inumeráveis melodias possíveis; (...). Por conseguinte, poderíamos designar o mundo tanto por uma incarnação da música quanto por uma incarnação da vontade, e compreendemos então imediatamente como é que a música empresta a todo o quadro, a toda a cena da vida ou do mundo real um significado mais elevado, e isto, com tanta mais intensidade, quanto mais íntima for a analogia entre a melodia musical e o fenómeno presente.»

in O Mundo como Vontade e Representação, Arthur Schopenhauer



Mas este modo de escapar é ainda demasiado efémero. A verdadeira saída para o sofrimento que a vontade constantemente provoca (pela carência na satisfação de desejos permanentemente renovados); a única saída efectiva consiste na sua própria anulação, na sua ausência. Mas isso implicaria a morte. É possível, no entanto, alcançar um estado alternativo de serenidade, de ausência de desejo e de vontade. O caminho é o da reflexão, o da meditação, o da renúncia ao corpo (experiência do Nirvana), lugar no qual o mais individual se revela, e sede da vida no seu sentido mais íntimo e radical. Esta solução resulta de princípios característicos das filosofias e das religiões orientais, tais como o budismo, das quais Schopenhauer assumiu a influência.

Parece-me que alguma reflexão e meditação são benéficas. Estou certa de que a música é essencial para a felicidade. E a via ascética não deixa de me seduzir algumas vezes. Compreendo o pessimismo do filósofo. Reconheço-lhe o brilhantismo e a genialidade das ideias, que serão retomadas, ainda que com outros contornos e nuances, e com outras orientações, por Nietzsche, por Bergson, e até mesmo por Freud. Não sou, no entanto, asceta e seguidora da filosofia de Schopenhauer. Também não sou voluntarista, no sentido filosófico do termo. As classificações generalistas podem ser muito úteis, mas são sempre redutoras. O que se impõe é reconhecer o mérito deste seu pessimismo. Há que conceder que foi brilhante o modo como escreveu e como pensou em busca da verdade. Um prisma de infinitas faces, talvez seja a verdadeira essência do mundo e da verdade. Neste caso, mostra-se a face da Vontade. Nem sempre bela.

Apesar da força das suas ideias, a filosofia do pessimismo radical encontrou-se num beco sem saída (uma verdadeira contradição nos termos) : a renúncia voluntária só pode ser em si mesma um acto de vontade. Pressupondo que a anulação da vontade seja um processo, e não obra de um mágico instante qualquer, a vontade (de renunciar) teria que estar sempre presente.
Hegel foi o principal alvo da sua crítica, muitas vezes injusta. O trabalho crítico pode ser demolidor. Pode ser também não sistemático e traduzir problemáticas vincadamente pessoais, quer dizer, traduzir o domínio da vontade, individual e subjectiva. Schopenhauer tomou Hegel como inimigo visceral, em grande parte porque todos corriam a ouvir o seu adversário filosófico, enquanto poucos apareciam para o ouvir a ele. Situação largamente provocada pelo facto de ter marcado as suas lições exactamente para a mesma hora, em Berlim. Aspectos biográficos interessantes, relacionados certamente com a sua brilhante tematização do papel da vontade na vida humana...

É por estas (e por outras) que gosto de filosofia!


Imagens: pesquisa do Google


Regresso ao futuro

Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...