terça-feira, 26 de janeiro de 2010

sábado, 23 de janeiro de 2010

Do Desassossego - II

Lisboa, 14 de Março de 1916

Meu querido Sá-Carneiro:

Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do «Marinheiro» ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.
Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histórico que aí vão saíram espontâneas do que sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena - cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.
Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar. Pode ser que se não deitar hoje esta carta no correio amanhã, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no Livro do Desassossego. Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.
As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.
Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.
De que cor será sentir?
Milhares de abraços do seu, sempre muito seu

Fernando Pessôa

P.S. - Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanhã, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histeroneurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si próprio que dele são tão características...
Você acha-me razão, não é verdade?

[a Mário de Sá-Carneiro]


Imagem daqui

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Uma parábola de Kafka



«Ele tem dois antagonistas; o primeiro empurra-o por detrás, a partir da sua origem. O segundo bloqueia a estrada à sua frente. Ele trava batalha com ambos. Na realidade, o primeiro apoia-o na sua luta com o segundo, porque quer empurrá-lo para a frente, e do mesmo modo o segundo apoia-o na sua luta contra o primeiro, dado que o empurra para trás. Mas só teoricamente é que é assim. Porque não são só os dois antagonistas que estão lá, mas também ele próprio, e quem sabe realmente quais são as suas intenções? O seu sonho, todavia, é que porventura num momento de distracção - e isto, devemos admiti-lo, exigiria uma noite mais negra do que qualquer noite que já tenha havido - ele saltará para fora da linha de batalha e será promovido, em consequência da sua experiência de luta, à posição de império sobre os seus antagonistas na sua luta de um contra o outro.»
Franz Kafka in Hannah Arendt, A Vida do Espírito I - Pensar

De acordo com a interpretação de Hannah Arendt, esta parábola de Kafka (parte de uma colecção de aforismos intitulada «ELE») descreve a sensação de tempo do eu pensante, e cito: "(...) Ela analisa poeticamente o nosso «estado interior» em relação ao tempo (...)".
Simplificando muito a interessante questão colocada, o ELE (o eu pensante) é aquele que escapa ao fluxo contínuo do tempo. Enclausurado entre passado e futuro, cabe-lhe a ele introduzir neste continuum uma espécie de ruptura, um Agora. Enquanto eu pensante, ELE consegue visualizar-se (e consciencializar-se) como presente, confrontado com o passado e com o futuro.
Na minha interpretação, Hannah Arendt faz, desta forma tão rica e tão bela, o elogio do pensar. Ainda que, no desenvolvimento das suas ideias, o pensar não deva ser "um escapar" ao espaço-tempo, mas, em última análise, uma inserção no tempo e no espaço pelo agir (e não será pensar uma forma de agir?). Assim se faz o presente, pelo qual temos a possibilidade de participar na construção do mundo. Sabendo que a nossa acção será imediatamente absorvida e incorporada na temporalidade: dando a mão ao passado (atrás de nós, segundo a metáfora espacial), e estendendo a mão ao futuro (o que se aproxima de nós pela frente, de acordo com a mesma metáfora), situados neste presente absolutamente efémero (aqui, no meio dos outros dois pontos de orientação - instantaneamente transformado em passado, e deixando de ser o futuro que permanentemente vem ter connosco).

Sem dúvida, uma cativante forma de perspectivar a nossa responsabilidade.



Imagem: pesquisa do Google

domingo, 17 de janeiro de 2010

Olhar e ver



Os quadros de Francis Bacon são inegavelmente espantosos e geniais. Vejo neles movimento e metamorfose. Mas, é-me sempre difícil olhá-los. Suponho que deva dizer, neste caso, "ainda bem". De algum modo (ou modos), torna-se explícito o horror que há no mundo, o horror que há no humano, sem que a sua revelação se torne limitação. Pressinto como que um potencial de horror nos seus traços, para lá do que é imaginável por mim, no instante em que os observo e vejo...
Outras imagens há, nas quais o potencial de horror se auto-limita pela sua crua exposição, concretizada nos mais ínfimos detalhes. Ou seja, de certa forma, o que era apenas uma hipótese algo indefinida, imaginada e pressentida, numa pintura de Bacon, torna-se visão gritante da realidade. Com a sensação de que para lá do que se vê então, não pode existir mais nada (?). Perante ela, a dor indescritível de ver, e a consciência de que o choque talvez seja necessário à acção.



Imagem: pintura de Francis Bacon

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Poema repetitivo




As mãos de vidro fino
no ar translúcido indolente e raro
prendem o tempo nas palavras ditas
e nisso movem-se subtis
pois quando dizem escrevem
e é só no papel que são gentis

Havia um imperador no oriente
e um belo livro de gravuras
ali na mesa à esquerda de onde estás
um belo palacete tu herdaste
aqui no teu pequeno ocidente
o espaço tempo do universo inteiro
na curva abrupta e curta do teu reino

[poderes nas mãos
os homens têm
e só nas horas vagas são mortais]

As mãos que são de veias latejantes
no ar opaco denso e impaciente
que comem tempo indo febris à boca
dançam colhendo gestos insensatos
que tiram da gaveta aqui ao centro
bebem-te a vida e o licor de flores
ali no teu armário da direita
e tu imperador nas mãos a chave

[licores de flores
que travo amargo têm!
mas só nas horas vagas são fatais]

Havia um homem livre num mosteiro
que aí a vida toda contemplava
no topo da montanha o céu brilhava
e o uno fragmentado se avistava
no livro raro as suas mãos escreviam
e todos em uníssono nele bebiam

[têm os livros raros
a alma posta em sossego
e só nas horas vagas são carnais]


Ana Paula S.B.




Imagem:
Study of a Woman's Hands, Leonardo da Vinci (Drawing - Royal Collection, Windsor)


sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Palavras leva-as o vento...


Caro interlocutor:


Daqui, desta terra longínqua que se chama Portugal, lhe envio estas minhas palavras. Escrevo-lhe, portanto, aqui deste país da Europa que se situa ao sul. Sob a influência do vasto mar Atlântico, este meu lugar parece ser porta sempre aberta para o mundo. É por isso mesmo que o faço, de acordo com a minha situação. Escrever é como abrir uma porta, e também uma janela. Deixar entrar alguém no nosso mundo por que nos dirigimos a um outro. Acho que podemos chamar a esta circunstância, própria do modo de ser português, uma relação (ainda que não seja um modo de estar no mundo exclusivo dos que habitam este extremo da Península conhecida por Ibérica, trata-se de algo que muito bem caracteriza os seus habitantes).
Julgo ser esta abertura aos outros, esta incessante procura de um contacto, uma espécie de recusa inconsciente das limitações resultantes de um certo isolamento. Claro que tudo isto sofre a influência deste mar que nos rodeia, e que também nos domina. Sabe... mesmo no interior, conseguimos sentir no ar vestígios de maresia. E, às vezes, na calada da noite, se nos concentrarmos na sonoridade do universo inteiro, nesse silêncio quase sepulcral da madrugada, é-nos possível ouvir ainda, na perfeição, o derramar constante e cadenciado das ondas, quebradas nas areias que nos circundam. Mas este mesmo mar não resolve todos os nossos problemas. Pelo contrário, parece impregná-los de um eterno vaivém de dúvidas e inquietações. Sim, nós temos problemas. Suponho que isso nos iguala ao resto do mundo, ainda que os nossos possuam as suas especificidades.
Por outro lado (desculpe a maçada, caro interlocutor), o que eu gostava mesmo de saber é apenas a resposta a uma pequena questão: "Como crer mais em nós mesmos?". Suponho que por aí, nesse algures que me deito a imaginar, não estejam afectados pelo mesmo pessimismo... Apesar do estado do mundo. É verdade que se encontra péssimo, face aos mais elevados ideais de progresso. Sinceramente, nem sei como lhe justificar tudo isto. Sinto que o seu mundo é o meu mundo. Sinto que hoje já pouco nos separa. Mas, repare, estas palavras podiam chegar-lhe aí quase instantaneamente. E, no entanto, aqui estou, neste cantinho à beira-mar plantado, preferindo deitá-las ao vento. Não podemos ignorar que há aqui uma história e um percurso. Algo que nos faz ser como somos. Se me responder, como espero, diga-me o que lhe parece. Quer dizer, acha que esta nossa posição altera alguma coisa? Enfim... em relação ao lugar no qual, em contrapartida, por aí se situam? Em que diferimos? Se é que diferimos...
Há lugares onde as gentes acreditam nelas próprias. Noutros, apesar do sol que é capaz de tornar o aguilhão do frio mais ameno (ou por isso mesmo!), a indiferença parece singrar. Mas, não duvide, somos adoradores do sol. Estou em crer que por aí também são, ao ponto de nos fazerem uma simpática visita. Talvez lá para o verão... O sol e o mar. Já vê o que nos define. Será isto pouco? Bem, posso confessar-lho: ultimamente, tenho tido esperança no vento...




Imagem: Wind from the Sea, de Andrew Wyeth (1917-2009)


terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Lhasa de Sela (1972-2010)





La Marée Haute

Apanhada de surpresa, sinto-me triste. Adeus, Estrela cadente...



Imagem: pesquisa do Google

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

200 anos de Chopin


«É um jovem que segue o seu próprio caminho, e sabe como agradar por esse caminho, embora o seu estilo de tocar e escrever difira grandemente do de outros virtuosos, e fundamentalmente num aspecto: no seu caso, o desejo de fazer boa música prevalece nitidamente sobre o desejo de agradar.»
- Crítica no jornal Wiener Theaterzeitung, em 1 de Setembro de 1829.
in Chopin - Vida e Obra, Jeremy Nicholas

Não se sabe ao certo a data em que nasceu Fryderyk Franciszek Chopin. Mas não há dúvidas quanto ao ano. Nasceu em 1810.
Em 2010 comemoramos o bicentenário do seu nascimento. Passados 200 anos desde então, muitas serão as homenagens à sua criatividade musical. Motivo mais do que suficiente para revisitar este compositor que tanto admiro.










Imagem: pesquisa do Google

Regresso ao futuro

Muitas vezes, diz-se: nunca regresses a um lugar onde já foste feliz. Mas como não procurar todos os lugares que nos parecem compatíveis com...