Por motivos pessoais, tenho reflectido acerca do perdão. Trata-se de uma noção estreitamente ligada à doutrina cristã. Eu fui educada para perdoar. Mas... estranho seria não ter tido que me interrogar acerca disto (tal como acerca de tantas outras coisas...), ao longo do tempo.A visão do ser humano como autómato incomoda-me terrivelmente. É certo que o sucesso da aprendizagem passa por alguns condicionalismos rígidos (em certos casos, verdadeiros mecanismos). Felizmente também há aprendizagens que se desenvolvem mediante uma actividade do sujeito. Claro que a educação que nos é dada é importante. Chega mesmo a ser determinante em muitas situações. Acontece que também nos educamos. Actualmente, situo-me em plena fase de tentativa de auto-educação.
Não é possível desligar o acto de perdoar do seu objecto, ou seja, daquilo que há a perdoar. Presumivelmente, existirão actos imperdoáveis. No limite, todos os actos podem ser perdoados. Mas é evidente que é muito difícil, às vezes mesmo impossível, perdoar efectivamente actos de destruição, de violência, de ódio, etc. Quer praticados de forma gratuita ou premeditada; quer praticados de forma irresponsável, indiferente, inconsciente. A própria inconsciência do acto praticado é insuficiente, inúmeras vezes, para atenuar a sua gravidade, ou a severidade com a qual ajuizamos acerca dele, sobretudo no caso de nos tocar directamente, provocando sofrimento.
Para pensar com todos os dados relevantes da questão (numa abordagem ligeira, obviamente), será preciso analisá-la no sentido inverso, quer dizer, quanto à dificuldade em perdoar que também pode incidir sobre nós e os nossos actos, neste caso, por parte dos outros.
No âmbito de uma leitura que prezo sempre muito, encontrei as seguintes palavras (que introduzem um outro sentido na questão):
«Se não fôssemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fizemos, a nossa capacidade de agir ficaria por assim dizer limitada a um único acto do qual jamais nos recuperaríamos; à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço.»
Hannah Arendt, A Irreversibilidade e o Poder de Perdoar in A Condição Humana
O que se segue a este propósito, no pensar de Arendt, é a diferença radical entre perdão e vingança. Enquanto que esta última nos mantém aprisionados, a capacidade de perdoar liberta-nos - porque introduz uma nova possibilidade de acção (quer para o que perdoa, quer para o que é perdoado). Sendo que a acção é do domínio da pluralidade (há muitos outros que existem connosco). Daí que o perdão só possa acontecer vindo dos outros, não sendo possível, em rigor, o auto-perdão.
Por outro lado, assinala que perdoar é mais fácil pelo amor, acontecendo, neste caso, de um modo distinto, na medida em que ocorre numa esfera privada. Mas, na esfera pública, que é aquela onde podemos manter a esperança acerca da humanidade, e persistir na construção de um futuro melhor, o que o amor não consegue, pode fazê-lo o respeito (pela pessoa, enquanto ser humano que é).
«Portanto, se fosse verdade, como o supõe a cristandade, que só o amor pode perdoar porque só o amor é plenamente receptivo a quem alguém é, a ponto de estar sempre disposto a perdoá-lo, não importa o que tenha feito, o perdão teria de ser inteiramente excluído das nossas reflexões. No entanto, o que o amor é na sua esfera própria e estritamente delimitada, é-o o respeito na esfera mais ampla dos negócios humanos.»
Hannah Arendt, A Irreversibilidade e o Poder de Perdoar in A Condição Humana
Na medida em que não confunda perdão com desresponsabilização (o que seria diametralmente oposto às intenções da autora), identifico-me com estas palavras - constituem fundamento para a minha posição (que não é de agora) contra a pena de morte, por exemplo. No entanto, continuo a tentar... educar-me...
Imagem: Helena Almeida, Sem Título - 1994-95 (detalhe)
22 comentários:
Ana Paula,
Mais uma reflexão notável que tirei distinguir autonomamente em hora mais própria.
Para já, queria pedir-lhe que passasse por aqui a levantar o que lhe deixei:
http://ovalordasideias.blogspot.com/2009/06/premio-anel-de-mobius.html
Obrigado pela sua escrita.
Carlos
Também ando pensando na minha reeducação. Mas no que se refere ao perdão, eu faço assim: não perdoo a tudo, e não sofro com isso.
Gosto muito de ler os teus textos.
Um beijo grande
Della-Porther
...só um ser fragilizado pela dor saberá perdoar
...quem nunca sofreu, quem nunca conheceu a dor, não sabe o que é o perdão
...ou seja, só perdoa quem ama
Notável e justa, essa correspondência do perdão ao respeito, na transposição da esfera do privado ao público.
Nunca tinha pensado nisso,
mas sempre o tinha sentido.
Por exemplo, a morte dos dois filhos do Saddam Hussein, em tiroteio derradeiro; o julgamento e a execução do tirano por enforcamento; também, a morte de Jonas Savimbi, aqui há uns anos, o corpo hirto no mato.
Nenhum destes quatro casos - excepto, em parte, Saddam Hussein (um ocidental islâmico!, derrotado por ser impossível demonstrar uma asserção negativa («Como se comprova não ter o que se não tem!?») -, me merecia qualquer simpatia.
Porém, por um sentimento de piedade ante a ineliminável fragilidade humana, é com um recolhimento meditado que consciencializo a morte que dizima os justos e os injustos.
Olá Ana Paula
muito a propósito o teu post, sobretudo numa sociedade, generalizando, claro, cada vez menos preocupada com o perdão, a humildade, a gratidão e outros valores tão essenciais à formação do indivíduo.
Sabes, sou uma felizarda porque Deus deu-me uma capacidade que muito aprecio: o dom do perdão.É verdade, faço-o com relativa facilidade. Já a humildade tenho que a trabalhar muito, sobretudo porque as pessoas continuam a confundir humildade com submissão.
Obrigada pela tua excelente partilha.
Esplêndido, Ana Paula.
Eu também sinto o perdão como uma libertação, algo que nos livra do rancor.
Creio que, para saber perdoar, basta termos em mente que todos erramos e que gostamos que compreendam as nossas razões. Tal como não espero que compreendam todos os meus motivos quando é a minha vez de pedir perdão, posso perdoar, aceitando as explicações, independentemente de aceitar os motivos. Não é uma problemática pacífica. Muitas vezes tenho dúvidas se o que prevalece - quando se atribui esse tal perdão - é o "amor" pelo outro ou o nosso próprio ego a fruir desse reconhecimento de clemência... Beijinho.
Tentativa de auto-educação? Parece-me muito saudável... :) Quanto a perdoar... creio que o que interessa é agir no interesse do outro... e muitas vezes é no interesse do outro que não devemos perdoar, ou continuará a bater na mesma tecla e a insistir nos mesmos erros... perdoar é difícil, porque é difícil superarmos o nosso orgulho, mas se o superarmos e virmos para além disso, percebemos que podemos não perdoar, perdoando... não perdoar pelo outro e pelo seu próprio bem. Faço isso muitas vezes com as minhas crianças... é uma espécie de um teatrinho... mas para mim, no meu interior, fica sempre tudo melhor se o perdão de facto ocorrer... fica tudo mais limpo e desimpedido... mas pode ser extremamente difícil... estas são talvez palavras mais simplórias para explicar mais ou menos aquilo que acabas de dizer acima de forma extremamente elegante, como sempre! :D Gostei muito do post... e muito da reflexão... se todos fizéssemos este tipo de reflexão, certamente o mundo seria bem melhor...
Beijinhos!
Pensando nesta temática e na dificuldade que temos em perdoar,lembrei-me de um texto de Pessoa, referido em a "Voz do Silêncio" de Helena Blavatsky"
" Há um presente imóvel como um muro de angústia em torno.
....Há barcos para muitos portos mas nenhum para a vida não doer, nem desembarque onde se esqueça."
bjs
gostei muito de ler, ana paula. a capacidade de perdoar é talvez aquela que faz de nós mais humanos, porque é também a mais difícil. exige de nós uma força e uma vontade que muitas vezes desconhecemos ser capazes de ter... aprendo sempre muito contigo. um grande beijinho e obrigada!
Talvez o perdão passe pela aceitação do outro como um ser único. Indo mais longe, talvez vendo no outro, alguém que faz o "papel sujo" para que possamos aprender. Penso que perdoar passa por fazermos um esforço para não julgar o outro através daquilo que somos,através dos "nossos filtros"
[Não tenho tempo agora para ler o post, como deve ser. Passo só para desejar um BOM S. JOãO, independentemente de gostar, ou não, de festejar. Beijinhos joaninos Ana Paula]
Ana Paula entendo o perdão como uma libertação, como uma capacidade que precisamos constantemente construir , pois é muito difícil em determinados casos. Concordo que é preciso essa auto-educação para que possamos nos tornar seres humanos melhores. um beijo, Eliete
Cara Ana Paula
Mais uma reflexão que nos ajuda a reflectir também. E, naturalmente, nos impele ao auto-questionamento.
É interessante que algo aproximado a este ponto de vista foi o que me segurou em determinada altura da minha vida. Fui educada na religião católica onde se chega a defender que, depois da agressão, ainda se deve oferecer a outra face. Também deixei de me identificar com as práticas religiosas há muito. Posta perante uma agressão profunda que interferiu definitivamente com a minha vida profissional e pessoal, tive de pensar seriamente no assunto do perdão para poder lidar com a situação. Mas a situação é imperdoável à luz de qualquer razoabilidade. Sem sentimentos de vingança a situação comia-me os pensamentos e ocupava-me os dias. Foi neste processo que percebi que não se tratava de perdoar para seguir em frente, mas sim de não deixar que, pela perturbação que tudo me continuava a causar, permitir que esses mesmos acontecimentos me continuassem a tolher a vida. Percebido isto, foi mais fácil "aceitar" tanta imperfeição do OUTRO. Não perdoei no sentido de desculpar porque não se pode desculpar (desresponsabilizar) o que foi feito. Não esqueci para me proteger no futuro. Mas estou apaziguada com o que se passou.
beijinhos linda Ana Paula
[Não sei porque é que criei a ideia que seria da zona do Porto...]
Olá Ana Paula
Como também fui educada nos princípios de uma educação baseada na cultura judaico-cristã, o perdão é para mim essencial, pois liberta. Mas, penso que perdão não deve ser encarado meramente como um gesto inconsequente, a desresponsabilização é sinal de indiferença ou de injustiça.
Perdoar sete vezes sete não é senão um acto consciente de amor e compreensão do outro.
Falta saber se o mal existe, de facto, independente do ser humano.
Estou a voltar muito lentamente e quero agradecer-lhe o seu cuidado, as suas palavras de amizade as quais me souberam tão bem.
Um beijinho grande e um abraço de amizade bem apertado
Isabel
Perdoo com muita facilidade.
Ódio é coisa que não sinto habitualmente (dá imenso desgaste).
Mas não vou para o céu... eheheh... porque sou meio agnóstico, meio ateu.
E, tal como tu, também continuo a educar-me.
Excelente reflexão sobre o perdão querida amiga. Gostei de te ler.
Beijo.
Hum... eu venho aqui regularmente. Interessante, todos se voltaram para o perdão... menos eu! que me debrucei sobre o respeito... :) Não estou preocupado, julgo eu, pelo menos. É que eu nunca tinha pensado nisto de poder haver ou de haver uma ligação entre o perdão e o respeito! E parece-me que haverá, sim. Em rigor, o que é isso de perdoar? Se justamente algo eu repudio na moral cristã é esse mandamento que estiola a agressividade, depois a coragem e por fim a vida. Um pouco como diz a Sol, "perdoar" só pode ter sentido se "não for perdoar", mas algo diferente, mais profundo e saudável. Não propriamente "esquecer" - tipo Alzheimer! brgh -, mas superar, não adoecer no ódio de uma vingança impotente, navegar para o outro lado do mundo, como num poema de Mouloudji, no fundo compreender o segredo esquecido de Lispector: - «A vida é mortal.» E isso é o respeito devido à nossa comum, frágil, humanidade.
Em suma,
perdoar não tem sentido;
tem sentido ser lúcido.
A consciência dos nossos limites, da nossa forma de agir imperfeita quando confrontada com o dever absoluto,permite-nos perdoar, perdoar é a consequência desta consciência dos nossos e dos actos dos outros com a mesma justiça e imparcialidade. perdoar liberta.
bjos
Cara e dedicada amiga Ana Paula
Passei para personalizar a oferta do Prémio que a Isabel, em parceria comigo, elaborou.
A Ana Paula merece-o.
Beijinho com ternura.
António
Aprender, aprender
sempre
Colocaste uma questão oportuníssima. Se tivermos em conta que, no mundo acutal quase não olhamos para o outro, ainda é mais pertinente. Perdoar, em absoluto, é um bem; cria energia positiva - como dizes, hipóteses de saída, ao contrário da vingança. Porém, mesmo para o próprio sujeito é difícil perdoar certos actos que pratica. Isto se considerarmos que, como referes, a pessoa se auto-educa, ou seja reflecte sobre si própria. Eu gosto de perdoar, contudo há vários actos que merecem, pelo menos, uma partidinha bem pregada; todavia quem somos para julgar algo ou alguém? Se fizermos isso, é convém que, primeiro, meditemos sobre as nossas azelhices. No entanto, a vontade de perdoar é sempre um desejo de reconciliação, de religar o que foi desligado, partido, fragmentado. É útil que saibamos dar conta da nossa fragmentação, de não nos considerarmos tão unos, tão completos, como muito acontece. Somos grão de poeira que pode ser radioso ou obscuro. Alonguei-me. Coragem e energia para as aulas. Hoje entreguei a papelada das avaliações. Agora, quase só falta o frete da auto-avaliação (deculpa lembrar). Apetece-me responder aos sucessivos "Como avalia o...", "Avalio bem, obrigado. Tudo excelente." E não sei se não farei algo parecido. Beijinhos.
:)
o perdão
:)
Enviar um comentário