Nesta fase pós-eleições europeias, o que não deixa de me inquietar é o elevado nível de abstenção. Este aspecto tem sido sobejamente focado por muitos dos que se preocupam com os factos políticos, mas penso que deverá ser matéria de reflexão ainda mais exaustiva. É a democracia que está em causa, é à democracia que compete auto-analisar-se nos caminhos que actualmente percorre.
Quando se é inquirido com alguma regularidade (como é o meu caso) acerca do significado do acto de votar, da sua importância, do seu valor, é quase impossível o alheamento face à questão. Coloca-se também a exigência de uma resposta positiva e que abra um caminho, ainda que difícil de trilhar, rumo a um ideal democrático que se defende.
Um tema que raro deixa de causar espanto quando se faz referência à Grécia Antiga, enquanto berço da democracia, então directa, é o da sociedade esclavagista onde floresceu esse governo democrático de outrora. Custa a crer: que à esmagadora maioria da população fosse vedado o direito de participação nos assuntos da polis. Tratava-se, portanto, de um governo com uma participação de todos muito relativa. A História dá-nos testemunhos e registos de outros interditos da mesma natureza. Acontece que hoje, no mundo dito civilizado, todos têm a possibilidade de se manifestar através do exercício do direito ao voto. Um direito que preferem não exercer, ou que esquecem ter. Que valor tem ele afinal?
Talvez por isso, esta espécie de comparação que faço, não deixando de ser um muito livre raciocínio analógico da minha parte, impõe-se-me. E coloco a questão nestes termos: até que ponto é hoje a nossa democracia verdadeiramente representativa, se metade (ou mais de metade) da população não se manifesta? Não há como escamotear o problema: o fenómeno não se reduz aos resultados da abstenção nas últimas eleições para o Parlamento Europeu - algo, por sua vez, bastante distante, desconhecido e incompreendido da maioria dos cidadãos. Apesar de, neste caso, a abstenção ter este tipo de justificação (só por si, matéria de reflexão também), o facto é que, em todas as eleições, os níveis de abstenção têm vindo a aumentar nos últimos anos. E não é só em Portugal.
Portanto, várias interrogações se colocam neste domínio. Algumas delas prendem-se, sem dúvida, com o conceito de representatividade democrática: por um lado, quer o cidadão ser representado, ou prefere apenas que lhe resolvam os problemas tout court?; por outro lado, querem os representantes representar de facto, ou preferem representar-se muito simplesmente a si mesmos? A questão é bastante vasta nos seus múltiplos desdobramentos... Certo é que a continuidade efectiva da democracia passa por estes detalhes, aparentemente pouco importantes.
Assinale-se, dada a situação, e sem que seja demais lembrá-lo: é preciso encontrar respostas e descobrir soluções. Uma possível explicação, à qual dou bastante atenção, é a que se refere ao hiato, ruptura ou corte, actualmente existentes entre cidadãos e agentes de governação. As pessoas sentem-se distantes, cada vez mais distantes dos centros de decisão. Raramente sentem que participam no que é importante. Porquê? - devemos perguntar. Será que elas próprias se afastam? Ou será que há toda uma cadeia intermédia, estruturalmente intransponível, entre elas e os seus representantes? Dar-se-á o caso de os motivos residirem nestas duas vertentes da situação? Na medida em que o exercício do direito ao voto já não é suficientemente expressivo da sua participação? A ser assim, atente-se na necessidade de encontrar novas formas de diálogo e de interacção entre os dois lados da vivência democrática. Em última análise, poderá ser determinante criar novos meios de expressão e de intervenção por parte dos cidadãos. Será a blogosfera um desses novos meios? Se ainda não é, poderá vir a sê-lo?
Facto é que, actualmente, a maior parte da aproximação que se faz entre a vida política e a maioria da população acontece via comunicação social. O poder desta dimensão de comunicação massificada é enorme, como todos sabemos. O que é também uma longa história... E não se pode esquecer: maior poder, maior responsabilidade.
Pois acontece que a aproximação existente, nos moldes actuais, tem remetido a actividade política para uma espécie de (tele)novela, administrada a conta-gotas nas nossas existências. Com a algo perversa particularidade de ser uma espécie de (tele)novela, ou folhetim, da vida real. Por muito respeito que se tenha pelo género, ele faz toda a diferença relativamente, por exemplo, a um momento de leitura que exija algum rigor e maior concentração. Mesmo quando se aproxima da dimensão do (tele)romance (atendendo a que a distinção entre novela e romance nem sempre é fixa), a vida política, com as suas vicissitudes, é emitida ao estilo de romance best-seller (com todo o respeito por tais campeões de vendas literárias). Ignorando a seriedade da questão, tal emissão, enquanto forma de entretenimento, alimenta-se deste estilo pré-definido. Infelizmente, também raramente alcança o nível de sátira política e social, o que teria maior valor, ainda assim... Para lá de algumas honrosas e admiráveis excepções, é este o estado de coisas com que nos deparamos, quando procuramos obter alguma informação ou esclarecimento. Resta perguntar: - para quando a nossa interacção com algo mais ao estilo romance premiado pela sua qualidade literária e de intervenção social made in século XXI, contemplando os domínios do rigor e do cuidado na análise, assim como os da invenção-inovação, alargando os nossos horizontes até às diferentes possibilidades de fazer política? Não se exige um estilo épico (não é preciso exagerar), basta só elevar um pouco mais a emissão (e correspondente realidade). E que seja isso aquilo que nos é dado ver, ouvir e conhecer.
Claro que isto é apenas um ponto de vista possível. E eu até li algumas fotonovelas (agora, relíquias simbólicas doutra era de comunicação e entretenimento). Mas, lamento, estou mesmo farta de telenovelas. E também um bocadinho de best-sellers.
Imagem: pesquisa do Google