Às vezes, penso nisto:Existir em série pode ser complicado. No entanto, é próprio do nosso tempo. Por todo o lado, o que se produz surge no mundo com réplicas suas em número elevado. O que implica, desde logo, duas facetas da questão: a réplica e o número elevado.
Claro que a maquinização do mundo é responsável por isso. Estou a pensar, por exemplo, na fábrica de Henry Ford e no célebre
Ford-T. Com o seu modelo
taylorista de produção. Como não apreciar a ideia de que todos tenham tido, então, a possibilidade de ter um carro idêntico, fabricado nas mesmas condições e usufruindo das mesmas vantagens?! Não um modelo exclusivo, acessível e permitido só a uns poucos, posicionando-se assim esses num lugar especial, para além de qualquer confusão com a maioria. Porque a produção em massa só é possível se houver consumo de massa, Ford dizia:
"Quero que os meus trabalhadores sejam os meus primeiros clientes." Claro que estavam por trás interesses financeiros e estratégias de marketing, mas é esse tipo de ideias e de actuação que abre a porta a todos.
De lá para cá, esse processo de abertura a todos tem aumentado a uma velocidade alucinante e é irreversível, parece-me. Além da globalização que actualmente todos conhecemos, estamos também na era da clonagem. Num futuro talvez não muito distante, poderemos ter
muitos de nós, iguais a nós, pelo menos com o nosso
ADN igualzinho. Ele poderá, assim, ser algo a adquirir, caso prove ser um código genético vantajoso. Acessível a todos num banco de dados. Ou então, seleccionam-se algumas características e disponibilizam-se num mercado. Rumo à competitividade genética. E tudo isto se é surpreendente, não deixa de ser inquietante. Também é certo que são reconhecíveis enormes vantagens, tal como desvantagens. Vale a pena reflectir nas implicações positivas e negativas de todo este presente e do futuro que se avizinha...
Mas, para mim, desde já, a grande questão é: existe algum limite? É possível afirmar que há algum domínio onde o
em série não possa aplicar-se? Bom, na verdade, só me ocorre um. E esse domínio não é o da
alta costura, onde a exclusividade tem um preço muito elevado, mas sim o do especificamente
humano, onde ainda sobrevive o que é gratuito. Para lá da questão da clonagem, com a sua réplica do
ADN, há uma área que a transcende no
humano: a dos sentimentos ou dos afectos. Não replicáveis?
Ou seja, chegaremos ao ponto de ter sentimentos em série? Afectos clonáveis? A ser assim, a dimensão do
ser-se especial que todos desejamos, ainda que algo inconscientemente, desapareceria.
Um amigo(a) não é sempre alguém especial, único? Aquela pessoa que amamos não é especial, única? É possível amar vários seres de diferentes maneiras. Mas existe um limite ou é possível um amor em série, um afecto massificado, algo que também podemos designar por
amor universal?
Claro que o
amor universal é possível, mas será sempre uma realidade abstracta. Amar em série não é possível. A amizade em série também não existe. Porque não se produz, cria-se. Não se replica, vive-se. Neste aspecto, o domínio da arte aproxima-se do dos afectos. São investimentos diferentes do investimento industrial ou tecnológico, ainda que possam relacionar-se. Tudo é
humano, sem dúvida, mas alguns aspectos são mais
humanos do que outros. Na verdade, são mais
humanistas.
Poderemos amar infinitamente em cada caso, mas a própria natureza (
humana) dos afectos impõe um número finito de seres que nos são especiais. Os nossos limites são sentidos como desvantagens e como fraquezas. Mas é possível que eles constituam a nossa mais radical
humanidade. Gosto de ser
humana.
Imagens
daqui