Sempre gostei muito de ler e reler Eça...
«(...) eu escapei, respirando, para a Biblioteca. Que majestoso armazém dos produtos do Raciocínio e da Imaginação! Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto essenciais a uma cultura humana. Logo à entrada notei, em ouro numa lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a região dos Economistas. Avancei - e percorri, espantado, oito metros de Economia Política. Depois avistei os Filósofos e os seus comentadores, que revestiam toda uma parede, desde as escolas pré-socráticas até às escolas neopessimistas. Naquelas pranchas se acastelavam mais de dois mil sistemas - e que todos se contradiziam. Pelas encadernações logo se deduziam as doutrinas: Hobbes, em baixo, era pesado, de couro negro; Platão, em cima, resplandecia, numa pelica pura e alva. Para diante começavam as Histórias Universais. Mas aí uma imensa pilha de livros brochados, cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia contra a estante, como fresca terra de aluvião tapando uma riba secular. Contornei essa colina, mergulhei na secção das Ciências Naturais, peregrinando, num assombro crescente, da Orografia para a Paleontologia, e da Morfologia para a Cristalografia. Essa estante rematava junto de uma janela rasgada sobre os Campos Elísios. Apartei as cortinas de veludo - e por trás descobri outra portentosa rima de volumes, todos de História Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente até aos últimos vidros, vedando, nas manhãs mais cândidas, o ar e a luz do Senhor.
(...) Jacinto aconchegara aí um recanto, com um divã (...). Cedi à sedução das almofadas; (...). Arredei uma "Gazeta de França"; e descortinei um cordão que emergia de um orifício, escavado no cofre, e rematava num funil de marfim. Com curiosidade, encostei o funil a esta minha confiada orelha, afeita à singeleza dos rumores da serra. E logo uma voz, muito mansa, mas muito decidida, aproveitando a minha curiosidade para me invadir e se apoderar do meu entendimento, sussurrou capciosamente: " E assim, pela disposição dos cubos diabólicos, eu chego a verificar os espaços hipermágicos!..."
Pulei, com um berro.
- Oh, Jacinto, aqui há um homem! Está aqui um homem a falar dentro de uma caixa!
O meu camarada, habituado aos prodígios, não se alvoroçou:
- É o Conferençofone... (...) aplicado às escolas e às conferências. Muito cómodo!... Que diz o homem, Zé Fernandes?
- Eu sei! Cubos diabólicos, espaços mágicos, toda a sorte de horrores...
Senti dentro o sorriso superior de Jacinto:
- Ah, é o coronel Dorchas... Lições de Metafísica Positiva sobre a Quarta Dimensão... Conjecturas, uma maçada! Ouve lá, tu hoje jantas comigo e com uns amigos, Zé Fernandes?
(...) - Não, Jacinto, não... Eu venho de Guiães, das serras; preciso entrar em toda esta civilização, lentamente, com cautela, senão rebento. Logo na mesma tarde a electricidade, e o conferençofone, e os espaços hipermágicos, e o feminista, e o etéreo, e a simbolia devastadora, é excessivo! Volto amanhã.
(...)
in Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras
[Nota: A minha paixão pelas Bibliotecas só tem rival no meu prazer pela vida - fonte de sabedoria.]
Imagem: pintura de José de Guimarães - pesquisa do Google