Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Livro dos Conselhos
Livro dos Conselhos
Gostei do filme de Fernando Meirelles, embora a luz branca e azul, metálica, invadisse toda a atmosfera, ofuscando-a. O que gerou o intenso contraste com os raros momentos de humanidade, quando os tons quentes conseguiam penetrar nos contornos das imagens.
Mas nada nestes instantes humanos cede ao facilitismo. Nada fica sem alerta para a beleza ou para a bondade fáceis. Nada fica escondido do olhar do próprio que procura "ver". "Ver-se". Após cada momento de depuração, o que resta de humanidade é pouco, surpreendentemente pouco. Embora inabalável.
Ser humano acontece ser difícil. Somos um processo ainda e sempre em (re)construção...
Um filme duro a partir de um livro obstinadamente duro. Um desafio da consciência para a consciência ( humana?).
Após ver o filme, releia-se o livro. Por exemplo:
«Quando eles se afastaram para irem cobrar o salário da vergonha, como o primeiro cego protestara com retórica indignação, a mulher do médico disse às outras mulheres, Fiquem aqui, eu já volto. Sabia o que queria, não sabia se o encontraria. Queria um balde ou alguma coisa que lhe fizesse as vezes, queria enchê-lo de água, ainda que fétida, ainda que apodrecida, queria lavar a cega das insónias, limpá-la do sangue próprio e do ranho alheio, entregá-la purificada à terra, se ainda tem sentido falar de purezas de corpo neste manicómio em que vivemos, que às da alma, já se sabe, não há quem lhes possa chegar.»
«O senhor é escritor, tem, como disse há pouco, obrigação de conhecer as palavras, portanto sabe que os adjectivos não nos servem de nada, se uma pessoa mata outra, por exemplo, seria melhor enunciá-lo assim, simplesmente, e confiar que o horror do acto, só por si, fosse tão chocante que nos dispensasse de dizer que foi horrível, Quer dizer que temos palavras a mais, Quero dizer que temos sentimentos a menos, Ou temo-los, mas deixámos de usar as palavras que os expressam, E portanto perdemo-los, (...)»
«Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.»
Mas nada nestes instantes humanos cede ao facilitismo. Nada fica sem alerta para a beleza ou para a bondade fáceis. Nada fica escondido do olhar do próprio que procura "ver". "Ver-se". Após cada momento de depuração, o que resta de humanidade é pouco, surpreendentemente pouco. Embora inabalável.
Ser humano acontece ser difícil. Somos um processo ainda e sempre em (re)construção...
Um filme duro a partir de um livro obstinadamente duro. Um desafio da consciência para a consciência ( humana?).
Após ver o filme, releia-se o livro. Por exemplo:
«Quando eles se afastaram para irem cobrar o salário da vergonha, como o primeiro cego protestara com retórica indignação, a mulher do médico disse às outras mulheres, Fiquem aqui, eu já volto. Sabia o que queria, não sabia se o encontraria. Queria um balde ou alguma coisa que lhe fizesse as vezes, queria enchê-lo de água, ainda que fétida, ainda que apodrecida, queria lavar a cega das insónias, limpá-la do sangue próprio e do ranho alheio, entregá-la purificada à terra, se ainda tem sentido falar de purezas de corpo neste manicómio em que vivemos, que às da alma, já se sabe, não há quem lhes possa chegar.»
«O senhor é escritor, tem, como disse há pouco, obrigação de conhecer as palavras, portanto sabe que os adjectivos não nos servem de nada, se uma pessoa mata outra, por exemplo, seria melhor enunciá-lo assim, simplesmente, e confiar que o horror do acto, só por si, fosse tão chocante que nos dispensasse de dizer que foi horrível, Quer dizer que temos palavras a mais, Quero dizer que temos sentimentos a menos, Ou temo-los, mas deixámos de usar as palavras que os expressam, E portanto perdemo-los, (...)»
«Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.»
in José Saramago, Ensaio sobre a cegueira
Espero ter visto o filme, olhando e reparando...
Imagem: pesquisa de imagens do filme no Google
Imagem: pesquisa de imagens do filme no Google