segunda-feira, 27 de julho de 2009

Conseguir dizer

É um dos livros mais tristes que li. Mas também é um dos mais belos. De uma tristeza e melancolia resignadas. De um pessimismo sem revoltas violentas, antes com uma rebelião pacífica (se é que tal pode existir - mas parece que sim, quando se trata de uma sensibilidade tão original, como é o caso). Refiro-me a Até ao Fim, de Vergílio Ferreira. A minha leitura mais recente.

Trata-se, sobretudo, de conseguir dizer o quase-indizível. E de como a literatura pode alcançar um ponto absolutamente metafísico. Por exemplo, Dizer uma dolorosa separação; Dizer a absoluta ausência do pai; Falar do momento em que já não é possível dar a mão...



Aqui fica um excerto que se fez palavra inesquecível, para mim. Não conseguiria explicar porquê.

«(...) E eu pergunto-me, não me pergunto, como é que? é uma pergunta anterior a eu olhar para ele com surpresa e compaixão. Que é que me liga a ti? mas há um mundo de coisas entre o perguntá-lo e o sermos ali. (...) Há um mundo de coisas de permeio entre a infância e agora e tu não estás lá. Porque a certa altura, deves sabê-lo, um pai deixa de entrar no jogo das coisas reais e passa para a mitologia. É quando ele é adorável na sua ficção, gostava que entendesses. Tenho uma imensa piedade de ti, enquanto ele abranda a passada, sustento-o sob o braço, sentar-se um pouco? e ele não me responde, olha em frente a sua abstracção, retoma o andamento. (...) E algum tempo depois o meu pai estava no grupo, sentado num banco, (...). Olha-me quase indiferente, eu devo ter na cara um espanto raiado de piedade e terror. Está do lado do destino, o meu pai, deve sentir-se muito acima de mim, com pena e desprezo pela minha inferioridade. Venho agora visitá-lo sempre que posso, cada vez mais irmanado à sua fatalidade, até senti-la quase normal. (...) Fechado sobre a sua condenação como sobre um bem privativo. (...) E o orgulho avultava no seu corpo franzino. Era dele como a sua fatalidade, ele fazia-mo sentir. Ser proprietário mesmo da desgraça, pensei. (...) Era Inverno, devia ser Inverno. Tenho frio na alma e na memória. Devia ser.»
in Até ao Fim, Vergílio Ferreira



[Em memória do meu pai, com muitas saudades de conversar com ele, neste Verão de 2009]


Imagem: eu e o meu pai, na ilha de Luanda

15 comentários:

Ricardo António Alves disse...

Nunca o li, embora tenha uma grande expectativa em relação a ele, uma vez que sucedeu ao magnífico «Para Sempre».

vbm disse...

Sempre ouvi falar desse "livro-depoimento" de Virgílio Ferreira; só li outros dele,; lembro o recolhimento que se apossa de nós, enquanto leitores, em certos trechos das suas reflexões.

Esta questão do relacionamento pai/filho é na verdade estranha... por causa do grande desfasamanto de idades, de experiência, da geração cultural.

Por exemplo, o meu Pai, de que sempre gostei: a sua experiência e vitalidade era muito diferente da minha; morreu subitamente quando eu tinha já vinte e nove anos; a idade em que faleceu torna-o mais novo do que eu próprio; como posso sequer conceber, imaginá-lo menos experiente do que eu!? É um dilema introspectivo!

Já a minha Mãe, essa preceder-me-á sempre, pois que ainda vive, é saudável, faz em breve noventa e cinco anos! Aqui, não tenho nenhum problema bio-lógico ou meta-físico :))

Patriota disse...

um grande escritor, pena não ser mais reconhecido, além de conhecido... =)

era ele mesmo que dizia:

"Não penses que a sabedoria é feita do que se acumulou. Porque ela é feita apenas do que resta depois do que se deitou fora."

"Escrever é ter a companhia do outro de nós que escreve."


adorei!!!! =)

A disse...

Muito doloroso este texto, esta imagem,... o livro.

Lauro António disse...

Estou consigo. Um livro fabuloso. Era o outro livro de Vergílio Ferreira que eu gostaria de adaptar ao cinema.
Estava a tentar, quando apareceu um realizador alemão que comprou os direitos, e nunca o rodou. Ainda penso nele, e creio que o Vergilio Ferreira iria gostar.
Cumprimentos.

partilha de silêncios disse...

Um belo texto !

Chamou a mim, lindas recordações e muita saudade. Já não lhe dou a mão, mas sinto a força que deixou na minha !!

Obrigada pelo texto, nunca li o livro, mas fiquei com vontade de o ler.

bjs

lobices disse...

Vasco:
...entendo as tuas palavras, pois meu pai, de quem também muito gostei, partiu em 86... há 23 anos...
...minha mãe também me precede ainda viva e robusta com 93 anos
...
(achei apenas interessante a analogia)

...um abraço

lobices disse...

Ana:
...este pequeno excerto de V.F. faz-me lembrar um pequeno texto que dediquei ao meu avô-materno
...vou postá-lo hoje à noite no meu wordpress
...um abraço

vbm disse...

Oi Quim!

Realmente, é uma sensação confortável ter mãe ou pai vivos, connosco, que já não somos tão nada novos... :)

Este ano, por exemplo, ela telefonou-me porque queria fazer um almoço de anos ao meu irmão mais velho - já septuagenário! -, e, sem ele saber, eu estar lá também em casa, no Porto! Vê lá tu: uma mãe nonagenária a festejar os anos dum filho septuagenário!

Bom, a descendência dela em filhos, netos e bisnetos vai para 33 pessoas, até ao momento!

Rita Roquette de Vasconcellos disse...

Olá Ana Paula
AInda não li
mas lembrei-me do meu pai
bj

Rita V.

ARTISTA MALDITO disse...

Olá Ana Paula

Não podia deixar de descer a esta publicação, venho atrasada...Férias, que interrompo por duas semanas.

"Até ao fim", disse eu para mim quando beijei o caixão do meu Pai. Vejo-a com o seu em Luanda, vem-me uma lágrima, a memória parece ter tanto poder como a palavra.

Beijinhos
Isabel

a cor dos meus seres disse...

Tu, fazes nascer um sentimento de ventre,
fazes soltar a vontade...
Nasceu a criança que recolhes nos braços, acaricias nos teus
vários Seres de Mãe-Amiga, esplendor de ti, conseguiste o mesmo que os outros tanto tentam expressar...o nadar num sonho.
Esta cor que me fizeste sonhar,este raciocínio tão rápido
que fica na ilusão, esta esperança que guardo no tempo,
este nascer de Seres que eu acarinho, esta Mãe que me limpa
as lágrimas, este grito ausente no sonho,
foi ele que mais uma vez me fez despertar!
Sinto a vossa falta.

Gostei de passar por aqui Ana e também eu poder deixar umas palavras de saudade.

um beijinho

mitro disse...

Ele consegue ser de facto quase angustiante!

Unknown disse...

Para dizer que o texto me suscitou saudades do autor. Hei-de rele-lo por estes dias.
Obrigado pela ideia.
R.V.

Porcelain disse...

Ninguém está acima de ninguém... esse é um grande erro que pais, autoridades, governantes, muito gostam de cometer... ou melhor, se alguém está acima de alguém, é algo que não nos cabe a nós julgar.

Podes continuar a conversar com o teu pai... :) Sugiro humildemente que o faças... :)

Beijinhos!

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